terça-feira, 21 de setembro de 2010

Oh as casas as casas as casas*

Carla Romualdo

Se nos afastamos do percurso oficial das auto-estradas, e nos atrevemos, com a pontinha de audácia necessária, a percorrer essas estradas municipais já quase abandonadas, que a cada ano perdem alguns centímetros para a floresta de eucalipto, descobriremos as espantosas casas do interior do país.

Em lugarejos esquecidos, rodeadas de árvores que crescem à revelia dos homens, erguem-se essas construções impossíveis: casarões com telhados de duas águas, jardins perfeitos aos quais nem sequer falta uma descomunal fonte de pedra, chalets improváveis num cenário desolado. Estas casas estão feitas de cimento e pedra e frustrações longamente sublimadas, de humilhações, sacrifícios, do orgulho apertado nos dentes por muito, muito tempo. Por isso são únicas e incongruentes, não pertencem ao sítio onde estão mas tampouco poderiam estar noutro lugar. Erguem-se e perduram ao lado do cão que continua a seguir com o olhar os forasteiros muito depois de eles se perderem na curva da estrada, do monte de sucata enferrujada, do poço seco, do ribeiro que já arrastou homens mas agora perdeu a força e se esvai num fio de água enlameada.

Raramente se avista gente nessas casas. Há estendais com alguma peça de roupa, uma toalha, um lençol enrolado pelo vento, há por vezes um baloiço ou um par de botas no jardim. Mas não há pessoas nem se imagina onde possam estar. Como fantasmas, estas casas erguem-se solitárias, visões fantasmagóricas no deserto da estrada, a tal ponto que não sabemos se as sonhámos, se desejámos vê-las para nos tranquilizarmos com a presença do humano numa estrada por demasiado tempo deserta.

Casas grotescas ou estranhamente belas, casas sólidas, para resistir aos temporais da serrania, casas que não morrerão tão cedo mas que já parecem quebradas por dentro, sem o sopro vital que também anima as construções. Casas que, na sua solidão altiva e absurda, me parecem, por instantes, um retrato do país, e, também por isso, ainda mais tocantes e insuportáveis.



*“As Casas”, Ruy Belo


(uma primeira versão deste texto foi publicada em 2009 em aventar.eu)

5 comentários:

  1. Os arquitectos costumam dizer que fazem a única arte que perdura na nossa vida, qua a formatam, que nos condiciona,que guardam os segredos de vidas e épocas.Este texto dá-lhes razão.

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  2. Alguém já lá viveu, elas perduram nas memórias de gente que ainda existe, nos sonhos em que se revivem a lá viver... Mas que lhes vamos fazer?
    E as cidades a crescerem desordenadamente, tão feias, sem espaço e segurança para as crianças brincarem...
    Lembrei-me dos Cem Anos de Solidão.

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  3. Fantasmas, dizes e muito bem. São mesmo fantasmas, tal qual os muitos fantasmas do nosso passado que ainda vivem dentro de nós, ou melhor que ainda existem, sem vida, dentro de nós. Tantos!

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  4. Cada um à sua maneira, os vossos comentários enriquecem este texto e apontam outros caminhos que a narrativa poderia seguir

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  5. Ó Carla eu ontem falhei mas aqui estou para falar desses fantasmas que existem nas casas mas, sobretudo, dentro de nós, como diz o Adão. Vamos tentando libertar-nos deles, mas é difícil. Agarram-se com força. É preciso arrancá-los e agarrar caminhos novos, com o prazer infinito de voltar a ser feliz. Um beijinho, Carla.

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