Marcos Cruz
Há coisas em nós que são extremamente difíceis de trabalhar. Tomamos consciência delas e achamos que, cumprida essa etapa, vai ser fácil repô-las no lugar. É, eventualmente, um efeito perverso dos comprimidos, cada vez mais comuns ao nosso quotidiano, sejam para uso pontual ou crónico: se temos qualquer variação nos níveis considerados normais disto ou daquilo, metemos uma ou várias pastilhas e, em mais ou menos tempo, a regularidade está de volta. Até pode ser que um dia haja comprimidos para a inveja, por exemplo, mas não creio que a raiz de onde ela vem possa ser moldada sinteticamente, que possa ser convertida por um corpo externo. O efeito desses comprimidos será, em princípio, paliativo, no sentido em que, deixado o seu uso, a inveja regressa, a menos que, como acontece nomeadamente com os fármacos antidepressivos, a pessoa aproveite as consequências anímicas da toma para trabalhar, ela mesma, a verdadeira causa da depressão. Detectar inveja em nós próprios é mau, dói por dentro, rói, mas também é bom, na medida em que nos consciencializamos de algo que, a partir daí, podemos tratar. Como tratar, eis a questão.
Não é fácil, não é nada fácil, não há fórmulas mágicas e muitas vezes o insucesso acumula raiva à inveja, as duas juntas contra nós, por não as conseguirmos pôr a nosso favor, por não conseguirmos encontrar nelas a outra face, que alegadamente nos querem dar, nos espetam à frente dos olhos, cegos, eles, desesperadas, elas. Não é de hoje que vejo em mim inveja, raiva, ódio, ciúme. Com o tempo, fui-me apercebendo de que esses sentimentos pertencem ao meu mundo pequeno, que se desvanecem à medida que esse mundo se alarga. Não tenho, por exemplo, inveja do universo, embora poeticamente pudesse invocá-la. Não tenho inveja das formigas fortes, das amêijoas-rainhas, das paisagens bonitas, dos homens que ficaram para a História. Mas tenho inveja dos homens que vivem a História, tanta mais inveja quanto mais essa História seja minha, essa História seja história. Tenho inveja de familiares meus, tenho inveja de amigos meus, tenho inveja de colegas meus, tenho inveja de gente do meu país, de gente que se destaca no meu país, de gente que escreve no meu país, de gente da minha idade ou mais nova, de gente que me ultrapassa em conhecimento específico, em saber técnico e proveito público. Porém, tenho pouca ou nenhuma inveja de estrangeiros, e isso é estupidamente incrível. Faz-me perceber o quão territorial é o animal que vive em mim, ou em que eu vivo, ou as duas coisas. Recuso apontar o dedo ao capitalismo, ao espírito concorrencial e competitivo de que fomos desde cedo imbuídos, ou talvez não recuse, mas aponto e pronto, não espero resolver com isso o meu problema, fazê-lo seria como tomar um dos tais comprimidos que nos anulam momentaneamente as dores, que nos silenciam a prazo o organismo, que arrolham o sangue espumante das nossas veias.
A culpa, ou a responsabilidade, se quiserem, de eu ser assim é minha, tão minha como a responsabilidade de deixar de ser. Ainda hoje lia, num jornal diário, uma crónica de um escritor que, pela fotografia, deve ter trinta e poucos anos. Como um cão que avista outro, fiquei logo hirto, de orelhas erguidas e pêlo eriçado. Toda a leitura foi tolhida por isso, por essa febre de lhe encontrar um defeito, de o criticar, de lhe assinar a certidão de óbito, tudo coisas que, desde o princípio, mas com mais pujança no fim, se viraram contra mim. Eu ladrei ali para mim próprio. Não sei o que é mais revoltante, se sentir isto, se sentir aquilo. Por outro lado, se eu não tivesse sentido aquilo não teria sentido isto, e se não tivesse sentido isto não sentiria o que agora sinto, ou seja, que aquele escritor contra o qual eu me dispunha era, de algum modo, eu mesmo, ou seja ainda, que em muitos casos os textos que eu escrevo vão ter eus desses a lê-los, a desaproveitá-los, a destruí-los. Pode parecer uma perspectiva estratégica, egoísta, calculista, e não sei como negá-lo, se calhar nem há maneira, se calhar nem vale a pena, se calhar é o que é, mas se o for será um egoísmo sábio, será para o egoísmo, porventura, o tal lado bom que me falta encontrar para a inveja, a tal outra face da raiva, do ódio, do ciúme e de todas as coisas que nos habitam, latentes ou patentes, desde que habitamos o mundo. E, se assim for, levar-me-á para mais perto do meu eu grande, do meu eu estrangeiro, do meu eu universal, do meu eu que não invejo, do meu eu que não inveja. Do meu outro mundo.
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
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O teu texto é um soco no estomago e enquanto sufoca - liberta. Depois da tomada de consciência da nossa estranha pequenez está a porta aberta em busca desse eu tão universal a beirar o não eu. A possibilidade de sermos verdadeiramente compassivos connosco e os outros. Obrigada, Marcos.
ResponderEliminarÉ bem verdade que a pequenez trás "bad feelings" é preciso dar-lhes a volta. Bom texto, consciente de realidades que não podemos afastar mas podemos e devemos saber "trabalhar"...
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