quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine


Capítulo XCVII

Vigésima terceira etapa: em Pontevedra (continuação II)

Em cima da bancada há uma grande travessa com febras temperadas e, ao lado, um quilo de arroz pronto para cozer. Os cozinheiros são três, falam muito baixo, refogam cebola, juntam-lhe bacon, preparam uma feijoada que, a julgar pelo cheiro, já parece apetitosa; as quantidades denunciam um grupo numeroso. Idades à volta dos trinta anos. Magros. Peles claras. Cabelos castanhos. Pelo aspecto podiam ser franceses da classe média; não são: faltam as etiquetas. Nem alemães: falta a arrogância. Talvez ingleses.

Inquiro em espanhol se poderei aquecer água. Afastam de imediato um tacho e incitam-me a aquecê-la; o que aliás não hesito em fazer, vendo a refeição deles demorada. Vamos conversando.

Agora caminham porém, no ano passado, percorreram o Caminho Português de bicicleta.

- De onde vêm?

- De Guimarães.

São os primeiros compatriotas que encontro no Caminho de Santiago. Passamos portanto a falar em português. Fazem na verdade parte de um grupo, uns caminham, os outros vão buscá-los a Santiago, uma organização colectiva embora, pelo que percebi, composta por amigos e familiares. Comentamos o caminho percorrido e a percorrer. Já me despedi, ainda acrescento:

- Cheira bem...

- Daqui a bocado: venha provar.

- Com muito gosto!

Volto com água quente para a mesa onde Sérgio instalou as vitualhas. Mais frugais do que os vimaranenses: fazemos apenas um bom chá. (Sou apreciadora de chás como outros podem ser de vinhos. Consoante as circunstâncias, alterno os chás fumados com os verdes, os indianos, com ou sem especiarias, os chineses, os açorianos, os chás de jasmim ou bergamota...) Agora bebemos um chá verde biológico que acompanha fatias finas de chapata com queijo, presunto, pepino, tomate... Mais fruta, iogurte, chocolate. Não é preciso mais para eu me deliciar.

Insistimos para que os venezianos se associem a nós, eles não querem, apetece-lhes outro tipo de comida porém, enleados na conversa, vão-se demorando connosco. Acabamos de jantar quando somos chamados.

- Para a mesa!

Inquiro se Sérgio, com quem caminhei nos últimos dias, pode também provar a feijoada.

- Claro! É sentar-se à mesa.

Acrescentam logo outro prato. Somos catorze. E, não obstante os nossos protestos, pois acabamos de ingerir um abundante jantar, enchem-nos dois pratos, arroz, bifanas e aquele feijão condimentado com especiarias, pimenta, cominhos e cravinho: uma iguaria. Sem margem para contestação, temos que jantar segunda vez.

A conversa também é excelente. Sentei-me à frente de um rapaz muito engraçado que, para mais, se exprime com a bonita pronúncia do Norte; um deleite para os meus ouvidos. São, pelo que percebo, católicos praticantes, gente sã e reflectida, com boa formação, tanto familiar como escolar; criaram um blog onde registam as actividades do grupo.

Para além de nós, têm dois convidados, um português e uma rapariga espanhola; a qual faz anos hoje. (Sérgio conhece este português, que encontrou no Porto.) No fim cantamos os parabéns e vamos, não obstante os protestos dos nossos anfitriões, pelo menos, lavar os pratos...

Antes de me deitar, converso com a massagista, que passou o serão a trabalhar – e só agora se consegue levantar da cadeira. Ela própria deve estar a precisar de massagens... Digo-lhe que faz parte das mais bela descoberta neste Caminho de Santiago: os bombeiros, os alberguistas, alguns habitantes, alguns comerciantes, todos os que, ao longo destes seiscentos quilómetros, de uma ou de outra maneira, fazem algo pelos outros. Comovida, ela abraça-me.

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