quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Um caso.

Carlos Mesquita

Chamemos-lhe Carlos, nascido em Vinhais, que é verdade.

Parece-me que o conheço desde sempre, mas parte contou-me ele; como ser filho do barbeiro da terra e ir à escola de almoço composto de pão com banha. Somos da mesma idade, da mesma região, cruzámos vidas na Lisboa para onde emigrámos; eu trazido pelo meu pai ele pelos irmãos mais velhos. Num ano dos oitentas que não recordo, fui buscá-lo a uma grande empresa para chefiar o meu fabrico, tinha sido colega do meu sócio que lhe conhecia as aptidões. Sabia fazer, sabia ensinar, um chefe (líder como agora se diz).

A minha empresa crescia, entrava equipamento, admitia-se pessoal. A triagem era feita por mim. Apareceu-me um jovem do Cacém que dizia ter experiência no ofício, ter andado por maus caminhos e querer deixar o Casal Ventoso. Para isso precisava de trabalhar, ter uma oportunidade. Chamei o Carlos e na presença do candidato disse-lhe que o tipo dizia ter muita vontade mas tinha de se ver se ele prestava, com igual frieza o Carlos pôs cara de chefe e interrogou-o sobre onde tinha trabalhado, com que equipamentos, e com quem, explicou-lhe que ali era para bulir no duro. Depois do interrogatório e das respostas, o Carlos sentenciou que se eu estivesse de acordo podia entrar no dia seguinte à experiência, uma hora antes dos outros para conversar com ele. Combinado, o jovem saiu muito agradecido. Eu só disse; - o meu sócio ainda me vai lixar a cabeça. Era um pensamento e saiu voz. O Carlos respondeu – não se preocupe eu trato do puto. O meu sócio não teve coragem de me dizer nada, embora me tenham dito que ele se queixava de ter um sócio maluco que empregou um toxicodependente. O Carlos adoptou-o, disse-me que ele era bom e sabia da arte, tinha só aquele problemazinho mas ele tratava do assunto. Passou a fazer um desvio para o levar a casa, não fosse ele “enganar-se no comboio e ir para Campolide em vez de para o Cacém” (a empresa era junto da estação de Queluz) e de vez em quando dizia-me que era preciso arranjar umas horas para ele fazer, e assim esquecer as companhias. A mãe do jovem passou a telefonar regularmente para o Carlos, dizia-lhe que o pai já há muito tinha desistido do filho, que ele o considerava o maior amigo; contava em casa que os verdadeiros amigos estavam no trabalho e não no Casal Ventoso. Mais tarde esse novo empregado já estabilizado na empresa pediu-me uns dias para ir fazer uma desintoxicação a Coimbra, obviamente concedi-lhos. Quando voltou perguntei-lhe como tinha corrido, disse-me apenas e triste, – foi muito difícil. Fiquei com a ideia de ter sido um fiasco. Pouco depois feriu-se numa mão num calcador da máquina e “foi para o seguro”. Nunca mais o vimos, soubemos que durante a baixa voltou ao Casal Ventoso, onde finou com uma overdose. A mãe fez um último telefonema a agradecer tudo o que tínhamos feito, o Carlos lamentava-se: - Mesquita se o puto não se tem aleijado nós ainda o safávamos. Não sei.

O Carlos foi para outra empresa, deram-lhe uma quota. Não lhe disseram que estavam falidos; veio a arcar com as responsabilidades da insolvência, os sócios foram saindo, restou um que se reformou e desapareceu.

Criou outra empresa, pequena. Tenho-lhe dado algum trabalho, do pouco que tenho para a sua dimensão. Hoje de manhã visitei-o estava ao telefone dizendo que só vendia as máquinas em conjunto, espera pagar as dívidas com esse dinheiro, não há trabalho. Com a idade que tem resta-lhe a reforma antecipada, acabou. Mais um.

5 comentários:

  1. Não há lugar para estas pessoas corajosas que tomam iniciativa, arriscam, trabalham no duro.Arranjar clientes, produzir,e cobrar não é para todos.

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  2. Carlos, esta abordagem individual, não macro, a que não estamos habituados nos teus textos, espero que seja para continuar.
    Esse rapaz teve a felicidade de encontrar quem ele quizesse apostar. Poderia ser de outra forma? Viramos as costas, desistimos lgo? Fico muito feliz por terem tentado. Durante esse tempo ele teve o calor de saber que tinha quem para ele olhasse como pessoa e não como um casos sem resolução. Não chegou, certo. Mas a outros chegam estas ajudas. E quem ajudou também recebeu algo em troca...

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  3. Uma das nossas TVs cobriu o "tratamento" dum jovem toxicodependente, e posteriormente mostrou-o a trabalhar curado numa empresa do Sobral. Quando entrevistaram o pai vi o Quatorze, que conheci tal como a mãe das reuniões da FUR (ó tempos) eram os delegados do MES. Com ele felizmente resultou. Referi o jovem no post para realçar o carácter do Carlos. Na rua da minha empresa vimos morrer na altura, vários toxicodependentes, era um lugar de tráfico e consumo, mas hoje o que me preocupa são as empresas que caiem como tordos. Podemos discutir a violência que grassa no mundo, mas isso não me apetece, pelo menos enquanto virmos o nosso país a caminhar para a falência. A violência do desemprego para quem só tem os rendimentos do trabalho para sobreviver, é o que mais me custa assistir. O Carlos é dos melhores profissionais das centenas que conheci na sua área, está na industria transformadora, cria riqueza desde sempre, revolta-me que abandone a actividade por razões externas às suas responsabilidades. Portanto, Clara, não te vou fazer a vontade, sei quais os textos que o meu povo gosta, até são mais fáceis de fazer, mas vou continuar com os post chatos ou macro chatos. Não consigo voltar as costas à realidade portuguesa, como não voltei no problema do jovem toxicodependente. Gosto de pensar que isso é ser coerente. Aliás, penso que concordarás comigo, se olhares as coisas pelo meu prisma.

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  4. Força Carlos! É mas PME que está 60% do PIB, 80% das exportações e 70% do emprego.É dificil tomar a iniciativa, investir, acordar todos os dias pronto para a luta. por isso eu digo, que enquanto este país for um país de funcionários não vai a lado nenhum. Funcionários, bancos e empresas a trabalhar para o mercado interno, grandes e monopolistas!

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  5. Abóbora! Carlos Mesquita! Podes escrever sobre ambas as coias, de diversas coisas... E podes tentar pôr na escrita o humor que tens ao falar...

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