segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Arte Poética. Nicolas Boileau-Despréaux,José Saramago, Josep Anton Vidal e Hélia Correia

Nicolas Boileau-Despréaux

(Paris, 1636 – 1711)

A ARTE DE ESCREVER
(fragmento)

Há certos espíritos cujos sombrios pensamentos São como nuvem espessa, sempre emaranhados, O dia da razão não saberia atravessá-la.
Antes, pois, de escrever, aprendam a pensar.
Conforme a nossa ideia é mais ou menos escura Assim a expressão, ou menos nítida ou mais pura.
O que se concebe bem exprime-se claramente, E as palavras para o dizer chegam facilmente.
(...)
Gosto mais dum riacho que sobre a macia areia Num prado cheio de flores lentamente passeia, Do que duma torrente transbordante, tempestuosa, Correndo cheia de pedras, em terreno lamacento.
Acelerem lentamente e sem perder coragem, Vinte vezes empreendam a vossa obra:
Limpem-na sem cessar e tornem a limpá-la; Acrescentem algumas vezes mas outras eliminem.

("Art Poétique", 1674)





José Saramago

(Azinhaga, Golegã,  1922 — Tías, Lanzarote, 2010)





ARTE POÉTICA

Vem de quê o poema? De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.

Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.

(Os Poemas Possíveis)

______________________



Josep Anton Vidal

(Barcelona, 1945 )

MOT A MOT

Veus l'horitzó i dius lluny, sents l'aire i dius presència,
sents la pluja i dius vida; veus la mar, dius remor,
veus els ulls d'un infant i dius tendresa,
veus la dona que infanta i dius dolor i amor, i dius misteri;
veus l'home i dius paraula, veus el pa i dius suor,
sents el vol d'un insecte i dius silenci,
mires els ulls del vell i dius record.
Veus els camins que han obert les petjades
i dius somnis i afanys i llibertat...
Veus el cel i dius tot i inabastable,
veus la volta estelada de la nit
i dius inconegut, dius infinit,
i dius immensitat, etern, petit...
Sents que et batega el cor i dius esforç,
dius coratge, dius lluita i ideals...
Et veus sol, i abatut, i miserable,
i dius jo, i dius tu, i dius nosaltres...
I veus les ombres créixer en el ponent del dia
i dius temps, i dius mort.

Així, mot rere mot, neix el poema
–allunyada presència, sorda remor de vida–,
il•lusió fugaç d'un món travat i fet,
un univers complet –i irreal, tanmateix–
on cada mot ocupa - vençut i dòcil, pulcre -
el lloc que li pertoca en un ordre aparent...

[La tendresa, l'amor, el dolor i el misteri,
el treball, la paraula, el silenci, el record,
els somnis i els afanys, la llibertat.
I el tot, inabastable. I el plural, impossible,
del jo, del tu, de l'altre.
I l'esforç obstinat, les idees, la història
–tanta sang, tants deliris, tants i tants crims, tants plors,
tantes vides desfetes per somnis miserables,
tants reis i tants messies, tants profetes i augurs,
tantes fes, tantes pors, tanta i tanta pregària,
tantes paraules buides, tants destins, tans amors,
tants camins que s'encreuen i tanta solitud,
tants savis, tants poetes, tants senyors i tants déus–]

...per teixir i desteixir sentits contra l'absurd,
per merèixer aquest temps d'atzar que en diem vida,
per ofegar el dolor de ser com som
–mesquins, inconsistents, fràgils, impurs–
i guanyar, mot a mot, la dignitat de viure.

PALAVRA A PALAVRA
(versão em português de Carlos Loures)

Fitas o horizonte e dizes longe, aspiras o ar e dizes presença,
sentes a chuva e dizes vida; vês o mar, dizes rumor,
vês os olhos de uma criança e dizes ternura,
vês a mulher parir
e dizes dor e amor, e dizes mistério;
vês o homem e dizes palavra, vês o pão e dizes suor,
ouves o voo do insecto e dizes silêncio,
fitas os olhos de um velho e dizes recordação.
Vês os caminhos abertos pelos passos
e dizes sonhos e desejos e liberdade…
Vês o céu e dizes todo e inatingível,
vês a abóbada estrelada da noite
e dizes ignorado, dizes infinito,
e dizes imensidão, eterno, pequeno…
Ouves bater o teu coração e dizes esforço,
dizes coragem, luta e ideais…
Vês-te só, abatido e miserável,
e dizes eu, e dizes tu e dizes nós…
E vês as sombras crescer ao pôr-do-sol
e dizes tempo e dizes morte.

Assim, de palavra em palavra, nasce o poema
– longínqua presença, surdo rumor de vida –
fugaz ilusão de um mundo feito e acabado,
um universo completo – e contudo irreal –
no qual cada palavra ocupa - vencida e dócil
o lugar que lhe cabe numa ordem aparente…

(A ternura, o amor, a dor e o mistério,
o trabalho, a palavra, o silêncio, a recordação,
os sonhos e os anseios, a liberdade.
E o todo, inatingível. E o plural, impossível,
do eu, do tu, do outro.
E o esforço obstinado, as ideias, a história
– tanto sangue, tantas quimeras, tantos e tantos crimes, tanto pranto,
tantas vidas desfeitas por sonhos miseráveis,
tantos reis e tantos messias, tantos profetas e augures,
tantas fés, tantos medos, tanta e tanta prece,
tantas palavras vazias, tantos destinos, tantos amores,
tantos caminhos que se cruzam e tanta solidão,
tantos sábios, tantos poetas, tantos senhores e tantos deuses.)

… para tecer e destecer sentidos contra o absurdo,
para merecer este tempo de acaso a que chamamos vida
para afogar a dor de ser como somos
– mesquinhos, inconsistentes, cobardes, impuros –
e ganhar, palavra a palavra, a dignidade de viver.
___________________



Hélia Correia


(Lisboa, 1949)


ARTE POÉTICA

Que o poema tenha carne
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.
Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.

Que seja rua ou ternura
tempestade ou manhã clara
seja arado e aventura
fábrica terra e seara.

Que traga rugas e vinho
berços máquinas luar
que faça um barco de pinho
e deite as armas ao mar.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.

Com música de sua autoria, José Jorge Letria canta este poema de Hélia Correia no Coliseu de Lisboa em 2009

8 comentários:

  1. Carlos, és um amigão por teres traduzido o poema do Josep. E que lindo é o da Hélia cantado pelo Zé Jorge.

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  2. Estamos aqui opara servir os clientes, senhora dona Augusta Clara.

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  3. Bem-revinda a maratona poética.
    O que não quer dizer que toda me agrade.
    Ao contrário da Augusta nunca gostei do 'Só assim será poema...', nem da gaivota que voava, voava (não sei se ainda se lembram do cansaço de a ouvir que fazia alguns acrescentar: fdp que não se cansava...).
    Também nunca gostei de ouvir o JJ Letria, e a orquestração acho-a fraca e pobre.
    Nem tudo o enroupado na esquerda ou Abril tem qualidade.

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  4. Quanto à gaivota, a essa, tens razão, Pedro. Eu, também, já não podia com ela. Era mesmo isso: fdp que nunca mais se cansava <:)) Mas da canção com o poema da Hélia Correia gostava.

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  5. Com a Revolução. houve uma explosão da demagogia. A canção da Ermelinda Duarte era, de facto, muito pobre. Quanto à da Hélia Correia, não me sinto à vontade para a criticar, pois lembro-me das versalhadas que escrevi para o Aristides e também para o Aires. Felizmente para mim e infelizmente para eles, as canções nunca foram gravadas (a não ser partcularmente) e os meus atentados à arte poética passaram despercebidos. Os chamados males que vêm por bem.

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  6. Ah, essa não sabia, Carlos. Mas lembro-me de ter ouvido um poema teu muito bonito cantado pelo Fanhais de que já não sei nem o título nem a letra. Podias ver se encontras o vídeo ou, então, publicá-lo aqui.

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  7. Esse poema de que falas - o poema II de "Poemas com grades", a que o Fanhais chama "Canção para Maria" gostava de o recuperar - perdi o vídeo que tinha e talvez só o Fanhais (que continua a mantê-lo no seu repertório) possa resolver a questão. Correspondendo ao teu pedido vou publicar o poema - a música, muito bonita, terás de a imaginar.

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  8. Era muito bonita, era. Não se pode pedir ao Fanhais? Mas, entretanto, venha o poema.

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