Adão Cruz
Sábado à noite, dia vinte e um, vésperas do Santo Natal.
O frio enrugava os ossos, a rua de Santa Catarina era um rio de gente, um rio de águas desencontradas, sem destino nem rumo, umas correndo para baixo outras para cima e mesmo para os lados, se algum dia se viu!
Gente por cima, gente por baixo, gente saindo e entrando não se sabe bem onde. Tanta porta aberta, tanta porta fechada, não se sabe ao certo. Pessoas em cima de gente, embrulhadas em pessoas e sacos e mais gente e mais sacos, pendurados nas mãos, nos ombros, no pescoço, nas orelhas, nos olhos.
Uma velha andrajosa, suja e gorda - de doença seria a gordura e não de fartura! -, uma provável anasarca cardíaca que faz do doente uma espécie de boneco Michelin rebentando de inchaços, uma velha gorda
excrescente tumoral - de trapos seria a gordura também! - (o frio enroscara-lhe o corpo com todos os farrapos do lixo).
Uma velha suja tentava subir a rua por entre a multidão limpa. Com grande agonia arrastava pelo chão, puxada por um cordel, uma caixa de papelão que dentro continha outras caixas e restos de caixas e mais papelão, provavelmente toda a sua mobília de quarto que haveria de montar, nesse arrastado andar, lá para o meio da noite, no vão de uma porta muito acima do 575, mais fora dos olhos dos enxotadores de pobres.
A velha, cuja idade mirraria as carnes se os inchaços se escoassem
não ia bem disposta nem dava ideia de estar bem no meio daquele mar de gente. Antes de tudo sentia-se afogar. Não era inveja dos sacos nem dos cheiros nem dos casacos nem do luxo -, sabia cá ela o que era o luxo! -, importava-se lá ela com todo o papelão dos outros
todo o papelão que ia dentro daquele mundo de sacos!
Ela só queria o seu papelão e que não estorvassem os seus bocados de passos, que juntos, não dariam mais do que dez à hora. Ela só queria que aquela gente toda ali parida pelo diabo, a não impedisse de arrastar a sua casa. Então praguejava bem alto: - vão todos pró caralho vão-se todos foder -.
Ouvia-se como música de fundo um lindo cântico de Natal…
- Filhos da puta deixai-me passar, vão-se todos foder - . Dois putos atiçaram a velha: - vai-te foder tu velha ranhosa -,ao mesmo tempo que ironizavam à gargalhada: - avariou-se o mercedes à gaja -!
A velha não se agastou mais do que já vinha, estava treinada na cena para não perder energias com a inutilidade de erguer a voz e ripostou num grunhido cavo: - vai levar no cu paneleiro de merda -.
A melodia de Natal escorria pelos ouvidos cheios de sacos
de paz e harmonia. Já quase exausta, com voz mais cava a velha dizia:
- deixai-me passar bandalhos - .
Lá em cima, Deus não deve ter levado a mal. Como reza o Divino Testamento, dos pobres é o reino do Céu. Em breve ela estaria com Ele para usufruir da eterna justiça e, na altura devida, Ele lhe daria, com ternura, um puxãozito de orelhas.
(Ilustração de Adão Cruz)
domingo, 10 de outubro de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Deus do Céu!
ResponderEliminarDeus do Céu, como esta família Cruz me dá trabalho! Ainda mal acabei de ler um texto, já lá está outro.
ResponderEliminar