quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Fim

 Marcos Cruz




Não me lembro do meu primeiro amor. Não posso sequer garantir que o tenha tido. Provavelmente não, porque, se o tivesse tido, e dizendo toda a gente que não há amor como o primeiro, lembrar-me-ia. Por isso, talvez toda a vida só me tenha amado a mim. Esta é a conclusão fácil. Por outro lado, lembro-me de ter amado quem me deixou, lembro-me aliás de ter amado todas as mulheres que me deixaram no momento em que o fizeram e por algum tempo depois, ou sempre depois, de maneiras e com intensidades diferentes. Por isso, talvez

toda a vida só tenha amado o que não tivesse, ou melhor, o que tivesse deixado de ter. Esta é a conclusão mais ou menos fácil. O mais fácil é chegar a ela, o menos é aceitá-la, porque, se a tomar como verdadeira, ponho-me perante um dilema difícil de resolver, face à primeira conclusão, que é: ou eu nunca me tive a mim ou deixei de me ter nalgum momento. Se pegarmos primeiro nesta segunda parte, contrariando um bocadinho a lógica das operações humanas – e ao dizer pegarmos, em vez de pegar, já estou a admitir que preciso da vossa ajuda para esgravatar isto –, a primeira coisa a fazer é tentar lembrar-me – e aqui, desculpem, terei de ser eu só, partindo do princípio, também ele questionável, como tudo, de que vocês não têm memória da minha vida – do preciso momento em que eu deixei de me ter. Admitamos que foi justamente no momento em que eu tive consciência de que me tinha, o que já de si é o paroxismo do paradoxo, ou, para termos a satisfação de já termos juntos “inventado” um termo, o paradoxismo. Mas se, simplificando, eu me perdi no momento em que me encontrei, então foi, por um lado, e face à segunda conclusão, aí que eu me comecei a amar e, por outro, aí que eu deixei de me amar. Esta é a conclusão mais ou menos difícil. O menos difícil é aceitá-la, o mais é achá-la mais difícil do que a primeira, porque a primeira, talvez por me implicar apenas a mim e ainda não também a vocês, dói mais – e, nesse sentido, é mais difícil de aceitar, o que nos põe já em oposição com o que eu, ou melhor, nós acabámos de concluir. Estamos todos, então, neste labirinto. Não sinto, porém, que esta, fácil ou difícil, seja grande conclusão. Talvez passe a senti-lo quando deixar de a ter. Agora, agora, atravessa-me a ideia de que, ao amar quem me deixou, o que eu amei foi, como acontece geralmente quando admiramos alguém, a capacidade de alguém fazer aquilo que eu não consigo. Neste caso, comigo. Esta é a conclusão difícil. Porque talvez implique que eu só me volte a amar no momento em que deixe de me ter. Por outro lado, neste preciso momento eu chego à conclusão, já atrás implícita mas nunca enunciada desta forma, de que o meu primeiro amor fui eu. E de que, dizendo toda a gente que não há amor como o primeiro, talvez esteja aí a razão de eu nunca me ter deixado. E esta, sendo porventura a verdadeira conclusão, a mais fácil, porque acessível a qualquer atrasado mental, e a mais difícil, porque dura de roer ao espírito mais elevado, não é, ao mesmo tempo, uma conclusão, e sim o seu contrário: um início.

(Ilustração de Adão Cruz)

1 comentário:

  1. Não acredito nada nessa de "não há amor como o primeiro". Para mim, não há amor como o último. Por isso, é que vivemos todos os outros antes: para que o último seja o melhor. Gostei muito do teu texto.

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