terça-feira, 12 de outubro de 2010

Os Senhores Singulares -( O romance da revelação do Brasil)- 1 - por Sílvio Castro

“Meu caro irmão, já lá terão chegado as saudades e cõ estarem tão distantes, as tenho ben presentes."


(in Carta inédita de Catarina, raínha de Inglaterra, ao seu irmão Pedro II de Portugal)


Levei muito tempo para compreender o que Coaracy me dizia. Vossa Senhoria não sabe quanto tempo levei para compreender as coisas deste mundo novo. Vossa Senhoria pode sorrir, mas foi assim. Hoje ao vos contar começo a saber realmente.


Se Vossa Senhoria quiser pode conhecer muitas e variadas estórias, pois eu vivi mais nestes tres anos desde quando me deixaram nestas terras, do que nos vinte e dois de minha vida d'antes. Meu nome‚ Afonso Ribeiro, e fui pajem do nobre Sebastião Telo, mas a desventura quis que eu tudo perdesse e me encontrasse aqui neste mundo de coisas e de gentes desconhecidas.


Vejo que Vossa Senhoria é curioso por tudo de novo que vê. Isto eu logo percebi quando chegou a vossa caravela, junto a uma outra menor, com a cruz de Malta que me fez sonhar logo que a avistei no horizonte. Me parecia que fossem algumas das naves do meu senhor Pedro Álvares Cabral de volta das Índias, mas logo acertei pelo engano porque as velas eram outras e os homens. Mas não me importei. Estava feliz da mesma maneira por ver aquelas velas como se fossem barcos do meu Tejo que eu pensava perdidos para sempre.

Tenho muito para vos contar e conto de relembrar tudo, porque são muitas as coisas que se escondem nesse tempo em que eu fui degredado e convidado, invasor e amigo amado, estrangeiro e companheiro, condenado e senhor de maravilhas. Foi um tempo de medos. Vossa Senhoria, que é muito inteligente e conhece muitos mundos, navegações, logo percebeu que vivi muitas coisas. Vivi muitos medos, não sei mesmo quais e quantos.

Quando naquela manhã clara de um dos primeiros dias de três maios passados eu estava sozinho na praia e as onze naves do meu Almirante partindo baixavam na direção do sul, levando toda a gente, eu senti um grande tremor. Os barcos se perdiam ao longe e eu estava ali parado naquelas areias brancas e tudo se fazia branco nos meus olhos, o horizonte, a terra. Se pudesse eu teria chorado. Eu queria chorar. Mas não podia. Meus olhos secos e espantados me fechavam dentro de mim e eu não sentia mais nada. Somente o medo. Não sei quanto tempo estive ali na praia, parado, sem ver mais nada. Foi quando senti as mãos de Coaracy sobre os meus ombros.

Uma vez, quando a armada do meu senhor Pedro Álvares ainda estava ancorada naquele belo porto que descobrimos no primeiro dia do nosso encontro com esta terra - o mesmo porto seguro que nós dois estamos contemplando neste momento - e Bartolomeu Dias me comandou de passar a noite junto com a nova gente que encontramos e eles não queriam que eu ficasse nas suas cabanas, me vi repudiado de todos e abandonado na praia que se escondia no anoitecer. Naquele momento de abandono eu chorei desesperado. Estar ali, diante daquelas terras sem fins, naquela noite que não me deixava ver e saber nada, a escutar todos os rumores da floresta, rumores novos para os meus ouvidos, continuados e ao mesmo tempo alternados nas vozes escondidas de feras, pássaros, bichos, árvores, ventos, tudo isso me fazia sentir como que perdido para sempre. Então eu chorei, chorei como o fazia quando era pequeno na casa dos meus pais no Ribatejo e sabia que não mais veria minha mãe morta. Chorei como seu eu fosse a única pessoa no mundo e ninguém me visse. Longamente e sem querer parar de chorar. Então senti as mãos de um homem da terra, um homem de cabelos grisalhos e rosto sereno que me abraçava como querendo trazer-me de novo de minha dor solitária para casa. Era Coaracy que me abraçava.

Vossa Senhoria se surpreende desses meus contos? Pois saiba que eu então ainda não podia nem mesmo pressentir o muito que viria depois. Sozinho com o meu abandono eu não sabia que mais adiante iria conhecer males e benefícios, assistir a desconcertos que na minha curta mas infeliz existência eu não poderia jamais conceber. Meu nobre senhor, para mim a vida se abria como se fosse um porto indevassável, fechado e perigoso, mas que ao mesmo tempo se mostrava acolhedor e benfazejo. Sim, vos contarei tudo. Espero somente de não me ter perdido em tantas andanças e surpresas da vida; que minha memória possa também imaginar o muito que os meus olhos viram e os meus ouvidos escutaram.

Tudo começou de imediato naquela manhã da partida dos meus companheiros de viagem que retomavam o caminho das Índias. Passadas algumas horas, quando o sol já se fazia mais forte e a praia se esvaziara como por encanto das presenças de centenas de naturais da terra, admirados com a partida das naves, a minha dor se atenuara e eu já podia tirar a vista do mar para as coisas da minha nova vida. Sabia que não estava sozinho. Comigo o Almirante comandara que ficasse um outro degredado, Antônio Fragoso. Dele não vos falarei logo porque, voltando àquele primeiro momento, vejo que por detrás de algumas árvores saem dois moços. São dois jovens marinheiros que eu já vira a bordo na nossa viagem que deu nestas terras. Sem mais nenhum medo, seguros diante do horizonte sem velas, eles agora correm pela praia, jubilosos, numa orgia de risos e saltos. Então eu penso como é fantástica a vida, pois eu sofro por estar aqui bandido e sonho a terra que me foi tirada, enquanto os dois moços gritam felizes por não mais lá estarem e confudem seus cantos de alegria com a luz do sol que ilumina esta manhã do nosso novo nascimento. Sim, porque eu sentia tudo como se me encontrasse diante de um nascer. Vossa Senhoria pode sorrir, mas depois saberá que hoje eu já não sou o Afonso Ribeiro que partiu de Lisboa no dia 9 de março de 1500 condenado ao desconhecido, que correu os mares por dias impossíveis, viu naufragar e desaparecer gente companheira, atingiu novo porto depois de tanta navegação e que ficou sozinho diante de si mesmo, como num constante espanto.

Volto àquele primeiro dia e quero ainda estar sozinho para poder esclarecer a Vossa Senhoria os meus sentimentos. Quero relembrar também para mim o que senti então, pois o meu tremor era grande e incrustrado em mim, como um molusco à sua pedra.

Desde logo, já agora um pouco sossegado pelo calor que as mãos de Coaracy me transmitiram, eu caminhava pelas areias brancas que começavam a esquentar com o sol alto. Caminhar assim, sem ver senão a si mesmo, numa confusão de tudo, paisagem e pensamentos, é como estar parado diante da mesma paisagem, pois são os pensamentos que caminham. Minhas pernas me levavam sempre avante, ignorando o devagar que me consumia. O vento leve que vinha do mar me acariciava - eu o sentia e não sentia - provocando na minha pele a sensação não do caminhar, mas de um estar dentro do vento. Quanto mais eu caminhava, mais o vento vinha comigo. Passei a senti-lo forte, sempre mais envolvente, como um barco que voa e que esquece o ondular das águas. Para mim o vento era a confidência diante do tremor. Eu sentia uma grande vontade de entregar-lhe todos os meus pensamentos para que ele os levasse para longe, até o Ribatejo. Comecei a falar com o vento, enquanto a paisagem de praias, areias, árvores, pássaros, vozes indistintas, me chegava de longe, fora do vento. Minha voz se confundia com o vento e ele levava as minhas palavras num vôo que fazia eco.

Escutando o meu eco, parei. Não mais sabia onde estava realmente, se ali naquela praia, ou no eco. O vento e o eco. Falei mais fortemente, quase a gritar. O eco me respondia e eu flutuava entre o vento e a minha voz do eco.

Depois, muitos dias depois, falei com Coaracy sobre o eco. Para mim, passado aquele caminhar perdido pela praia, consolado pelo vento, o eco era o meu grande companheiro. Nele eu encontrava consolações, como se com ele falasse com os meus caros e retornasse à minha terra. Eu dizia -Afonso e o eco me dizia -o n s o, e era como viajar para trás. Gritava -minha mãe, m ã e; -adeus, e u s.


Vossa Senhoria acredita nessa minha consolação? Vossa Senhoria é de muitas bondades e gentilezas, por isso me compreende. Mas eu não compreendi logo Coaracy. Será porque nos falávamos então principalmente por gestos, mas Coaracy procurava sempre me dizer das coisas. Então ele me disse que o eco para ele era como uma parede que impedia que ele chegasse até aonde desejava ir e que o seu grito indicava; como se o eco lhe impedisse de encontrar as coisas desejadas ou de chegar aos lugares sonhados. Não era como o meu eco. Coaracy me disse que era assim que a sua gente via o eco, não como eu fazia. Levei muito tempo para compreender o que Coaracy me dizia. Vossa Senhoria não sabe quanto tempo levei para compreender as coisas deste mundo novo. Vossa Senhoria pode sorrir, mas foi assim. Hoje ao vos contar começo a saber realmente.

(Continua)

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