sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Os Senhores Singulares -( O romance da revelação do Brasil)- 4 - por Sílvio Castro

Bem, agora posso de novo contar tudo com clareza a Vossa Senhoria. Já não me sinto na grande confusão de antes. A viagem continua, o medo do naufrágio continua. Vossa Senhoria acredita possível o naufrágio para um que está na terra e não no mar? Quero confessar um coisa muito absurda, eu me sinto como um náufrago na terra. Me debato com as coisas e não consigo tocar a praia. Meu corpo exausto se consome e eu não sei onde chegar. Mas de certa maneira desde aquele primeiro dia de contacto com a gente nova e a terra, me sinto mais sereno, não que o tremor me haja abandonado ou o medo do desconhecido, desaparecido. Mas‚ como se tudo se tivesse transformado em um sonho, medo e tremor, esperanças e inseguranças, desconcertos e encontros.

O nobre Pedro Álvares Cabral nos levou, no dia seguinte, numa grande procissão pela nova terra achada. Éramos uma multidão, com o grande Comandante à frente, nas mãos a Cruz de Cristo. O Comandante, os doze capitães, os sacerdotes, os nobres do séguito, a gente toda, caminhávamos por aquelas praias.


Chegado a um ponto saliente da terra, Pedro Álvares parou e fincou ali o marco da conquista de Portugal. A nova terra encontrada era consagrada ao nosso Soberano. A grande procissão retomou a marcha na direção de uma ilhota, onde foi dita missa solene. A tudo isso assistiam aqueles da terra, homens e mulheres. Muito curiosos e por nada temerosos, eles acompanhavam todos os nossos passos e gestos. Não demonstravam senão curiosidade. Por tudo.

Depois da missa, que muitos deles assistiram de longe, a grande comitiva se espalhou pela praia, criando-se grupos dispersos dos nossos e de muitos deles. Alguns marinheiros se apartaram além do rio com jovens nativos e entre eles muitas moças. Os grupos festejavam e se tocava música com gaitas e tambores, chocalhos e pandeiros. Ao longo da praia a nossa gente cantava e bailava com os nativos, como se se conhecessem desde sempre e fossem amigos desde há muito. Eu me apartava vendo tudo isso. Pero Vaz se aproximou de mim e me perguntou por que te apartas, Afonso? não vês que eles são nossos amigos? ou temes de não seres da mesma maneira deles?

Assim foi por muitos dias. Todas as manhãs descíamos em grupos, grandes e pequenos, à terra para conhecê-la mais e fazer amizade com os nativos. Os capitães e os principais da armada guiavam os encontros, cada qual endereçado ao seu maior interesse. Começaram, alguns deles, com a ajuda dos nativos a derrubar e carregar grande quantidade de uma madeira de que se fazia uma tinta vermelha. Eu já notara que alguns dos nativos, principalmente os mais fortes, se mostravam com a pele nua pintada com a tinta vermelha tirada dessa madeira. Pero Vaz me disse que era a madeira brasil, boa para a tintura das vestes dos fidalgos e nobres. Desta árvore se encontrava por todo o lado da costa e parecia que não tinha fim dela. Os nativos ajudavam os nossos a carregar os troncos para bordo e o fazia como sempre com grande gratuidade.

O nosso grande almirante Pedro Álvares não descia sempre à terra; somente o fez três ou quatro vezes, em momentos solenes, pois queríamos que os nativos vissem nele a majestade do nosso Soberano, que ali ele representava. Mas me parecia que não davam particular atenção e importância a isso. Mais sucesso fazia Bartolomeu Dias que estava sempre com eles e que os maravilhou desde aquele segundo dia quando, descidos na terra, vimos que em grupo nativos entravam e fugiam do mar, como que caçando alguma coisa. Era um tubarão. Bartolomeu Dias entrou na água e matou a besta-fera, carregou-a para a praia e a regalou àqueles que antes procuravam caçá-la.

Porém, um entardecer, como de costume, nos preparávamos para voltar às nossas naves, Bartolomeu Dias, a mando do Comandante, ordenou que eu ficasse ali e acompanhasse os nativos na aldeia deles. Eu antes já lá estivera um desses dias, com Pero Vaz. Agora eu estava ali, em meio a eles, enquanto os meus se dirigiam para bordo. Me senti como perdido, abandonado. Os nativos lentamente tomaram o caminho da aldeia e eu fui com eles. Não me trataram, todavia, da mesma maneira como faziam sempre, mas me olhavam um pouco desconfiados. Eu, com muito medo, os seguia. Chegamos à aldeia, eles entraram na grande cabana central e eu também. Então, enquanto eu procurava me alojar, vi que confabulavam e logo depois dois deles vieram até junto de mim e me pegaram sem violência pelos braços e me conduziram assim até a praia, como me dizendo que não queriam que eu dormisse nas suas cabanas. Me deixaram sozinho ali. Bartolomeu Dias, com um pequeno grupo de marinheiros, ainda estava em terra. Quando me viu na praia, veio até a mim e me comandou que voltasse para a aldeia e depois partiu definitivamente para bordo. Eu fiquei sozinho. Não sabia o que fazer, mas não podia desrespeitar as ordens de Bartolomeu Dias. Voltei para a aldeia e fui novamente expulso. Desesperado passei aquela noite no alto de uma árvore. De vez em quando, um nativo vinha e me olhava. Eu não sabia o que eles pensavam, mas sentia um grande medo. Desde aquela noite compreendi que Pedro Álvares me teria deixado para sempre naquela terra.

Chorei silenciosamente e por muito tempo, até que o cansaço me dominou e dormi.

Eu gostaria de poder dizer a Vossa Senhoria, que é de muita compreensão, o que eu sentia então. Mas me faltam as palavras boas para isso, gostaria de ser menos ignorante e poder dizer-vos da minha angústia de então. Tinha a lembrança do que me dissera Pero Vaz: eu devia aprender a língua deles para poder servir assim o meu Rei. Mas eu me sentia muito fraco, incapaz de aprender o que fosse, mesmo a menor coisa. Sentia a minha impotência, mas ao mesmo tempo sabia que esse era o meu destino. Eu nunca pensara, mesmo quando servia ao meu senhor, o nobre Sebastião Telo, nas suas viagens na Espanha e tinha de falar com os castelhanos, e em verdade aprendi bastante da língua deles então, que fosse importante aprender uma língua desconhecida. Eu digo a Vossa Senhoria que sabe falar muitas línguas quanto me era ignorada esta importância. Eu falava a língua de minha mãe e com ela eu me satisfazia em tudo que o mundo me pudesse oferecer. Mas logo depois daquela noite de angústia compreendi como me enganava. Ah! Vossa Senhoria se ri da minha simplicidade, mas é assim.

Depois chegou o dia triste da repartida da nossa armada. Foi um alvoroço já na véspera, naquele primeiro de maio. A bordo das doze naves era toda uma grande azáfama. Um dos nossos barcos, o menor, que servira antes para depósito do abastecimento de toda a armada, retornava a Lisboa por ordem do Almirante para comunicar ao Rei, nosso Senhor, da grande novidade que era aquele encontro. Pero Vaz acabou nesse dia a sua longa carta ao Rei.

No entardecer daquele dia eu fui levado por Bartolomeu Dias diante do nosso Almirante. Pedro Álvares me comandou de ficar a partir do dia seguinte naquela terra, que aprendesse a língua dos indígenas, me fizesse amigo deles, visse se eles sabiam da existência de ouro naquela terra, que fizesse tudo para a maior glória do nosso Soberano. Pedro Álvares me disse tudo isso com grande voz de comando, como ele sempre fazia. Mas como era um grande Senhor, na sua voz eu sentia também alguma coisa de diverso, de mais perto de mim, quando falou para incutir-me esperanças no futuro. Eu o escutava, temeroso e respeitoso, sabendo dentro de mim que todas as esperanças eram impossíveis.

No dia seguinte, apenas pouco depois do amanhecer, eu me encontrava sozinho naquela praia do porto seguro, vendo as nossas caravelas que se moviam lentamente, que se encaminhavam mar adentro e depois se perdiam no horizonte. Eu sozinho diante de tudo. Foi então que senti mais uma vez o abraço amigo e protetor de Coaracy.

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