quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Imprensa cultural durante a ditadura (para a história dos suplementos culturais)

Carlos Loures

Os suplementos dos jornais diários de Lisboa e Porto eram de uma grande importância, pois ali se criticavam os livros, as emissões de televisão e de rádio, as peças de teatro, os filmes. Os melhores jornalistas, críticos, professores, escritores, colaboravam. Saíam quase todos às quintas-feiras e quem queria andar actualizado comprava mais do que um. Nada que se compare com o que agora se faz. Os chamados suplementos culturais de diários e semanários são coisas superficiais, comercialóides. Não me estou a lembrar de nenhum que mereça a pena ler. Por estes recipientes de publicidade, não se avalia o que eram, nesses anos que antecederam o regime democrático, os suplementos culturais.

Fui colaborador dos suplementos culturais do Diário Popular, do Diário de Lisboa, do Jornal de Notícias e de páginas e suplementos de numerosos jornais de província, entre outros do Jornal de Évora, A Planície (Moura), O Templário (Tomar), A Nossa Terra (Cascais), Notícias de Guimarães, Jornal da Costa do Sol (Cascais), Almonda (Torres Novas), etc. Porém, as experiências mais marcantes neste campo, foram a da revista Setentrião, em Vila Real da qual já aqui falei e a do suplemento Labareda de «O Templário», de Tomar.

Colaborar na imprensa regional era um trabalho de militância cívica a que muitos escritores e jornalistas não se furtaram. Às vezes, sem que se esperasse, um trabalho publicado nessas humildes folhas ganhava grande divulgação. Uma entrevista que fiz para a Labareda, em Janeiro de 1964, a Fernando Lopes Graça e embora o maestro tenha desconversado comigo todo o tempo, o resultado foi interessante, pois foi abundantemente transcrita na imprensa diária, em resumos ou na íntegra em quase todos os jornais, e referida em revistas. Até o Diário de Luanda a reproduziu. Entre outras afirmações desassombradas, Lopes-Graça considerava os agrupamentos folclóricos, criados por António Ferro, o Goebbels português,, como «meras contrafacções» da cultura popular genuína. Foi uma bomba.

Em 1963, alguns colaboradores dessa imprensa lançaram a ideia de se realizar um encontro anual das páginas culturais. Para quem não se lembre ou não tenha vivido esse tempo, recordo que os suplementos culturais desempenhavam um papel importantíssimo na resistência de uma cultura autónoma, não controlada pelo regime. Naturalmente que eram submetidas à Comissão de Censura que, muitas vezes, cortava tudo ou quase tudo. Entre os escritores que impulsionaram esse movimento recordo os de Manuel Ferreira, Mário Braga, António Augusto Menano, Manuel Simões, António Sales, Vasco Granja, António Cabral, Arsénio Mota, José dos Santos Marques, Bento Vintém, Joaquim Canais Rocha, Aurora Santos, Fernando Grade, Silva Ferreira, Santos Simões, José Ferraz Diogo, Alfredo Canana, Jorge Moita e tantos outros.

A designação inicial dessas reuniões era a de Encontros de Suplementos e Páginas Culturais da Imprensa Regional, depois simplificada para Encontros da Imprensa Cultural, dado que os jornais diários começaram também a enviar representantes. O primeiro encontro realizou-se na Figueira da Foz em 28 e 29 de Setembro de 1963. Estiveram presentes, entre outros, os escritores Daniel Filipe e o Alfredo Margarido, recentemente desaparecido. Na ordem de trabalhos, salientava-se o carácter essencialmente cultural dos suplementos e páginas culturais (vacina contra a suspeição das autoridades), referindo-se as dificuldades intelectuais de colaboração.

Aliás, a comunicação a esse primeiro encontro da Labareda, suplemento de que eu era activo colaborador, exortava os intelectuais a saírem da sua torre de marfim e escrever para um público diversificado de estudantes e de trabalhadores, abandonando a linguagem pseudo-elevada em que habitualmente se exprimia. Apontava-se também a necessidade de criar alguma coordenação entre os diferentes suplementos e páginas, ao nível do intercâmbio de textos e apontava-se a conveniência de criar um prémio literário anual. Entre as diversas conclusões e medidas, destaca-se a criação de diversas comissões específicas, a instituição de prémios anuais (tendo-se elaborado os respectivos regulamentos) e, por sugestão de Vasco Granja, a marcação do II Encontro para a vila de Cascais.



O II Encontro realizou-se, em Junho de 1964, conforme ficara determinado, em Cascais, organizado pelo jornal «A Nossa Terra» daquela vila. Em representação da Sociedade Portuguesa de Escritores, presidiu Manuel Ferreira que na abertura da primeira sessão de trabalhos se congratulou por se assinalar a presença de representantes de todos os suplementos activos do país, registando-se um avanço relativamente ao encontro da Figueira. Antes de se entrar na discussão da ordem de trabalhos, Santos Simões, do «Notícias de Guimarães» pediu um minuto de silêncio em memória de Daniel Filipe. Momento que a fotografia acima fixa. Estava também presente o escritor catalão Fèlix Cucurull. Foi criado, por decisão tomada nesta reunião, o boletim «Encontro» de que apenas saíram dois números. Em Fevereiro de 1965 todos os arquivos e material gráfico da publicação foram apreendidos pela PIDE e preso o seu coordenador.




O III Encontro realizado em Guimarães, no Hotel das  Caldas das Taipas,  em Agosto de 1965, sob a presidência do escritor Ferreira de Castro. 1966. Na foto, vemos o momento em que intervinha Santos Simões, do «Notícias de Guimarães», anfitrião do Encontro.

Não existe uma informação pormenorizada sobre a evolução deste movimento. Ainda estive presente no IV Encontro, realizado em 1967 no Casino da Figueira da Foz, presidido, salvo erro, pelo escritor Mário Braga. Em 1968 passei uma importante parte do ano preso em Caxias, mas deve ter sido realizado o V Encontro. Em Fevereiro de 1969, em Guimarães, presidido por Mário Sacramento, houve o VI e creio que último Encontro de Imprensa Regional. Muito do que estou a dizer é dito de memória, não encontro registos credíveis e se alguém tiver elementos que aqui faltam ou puder corrigir falhas ou imprecisões por mim cometidas, ficarei grato. Porque era importante fazer a história deste movimento que, reunindo gente de pequenas cidades, fora dos dois grandes centros urbanos do País, conseguiu criar bastiões, redutos, onde se defendia a cultura das investidas da estúpida fera fascista.

Mas creio que depois não se realizaram mais encontros. A partir de 1969, a luta política agudizou-se, as pessoas que animavam os encontros iam sendo presas ou estavam absorvidas por essa luta que passara do papel para as assembleias de empresa, de faculdade, para os quartéis… Os passos cadenciados que abrem a «Grândola Vila Morena» ecoavam já no nosso horizonte. Dentro em pouco, os capitães do MFA começavam a reunir. Uma nova realidade se avizinhava e nela já não cabiam as modestas folhas dos jornais de província.

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