sábado, 23 de outubro de 2010

Senhores Singulares -( O romance da revelação do Brasil)- 12 - por Sílvio Castr

(Continuação)

Tainá II

Coaracy foi e tem sido o meu grande mestre no conhecimento da língua. Porém, desejo que Vossa Senhoria que me escuta com tanta atenção saiba que Tainá foi quem me fez sentir como participante vivo com a nova voz que desde então me quero dar. Não sei bem como explicar o que digo, mas vou tentar.


Desde aquele dia mágico em que eu me uni diretamente com Tainá nas águas frias do nosso rio, ela passou a ser para mim fonte de revelações. Naquele encontro, como já contei, de certa maneira superei com ela as angústias sobre o meu corpo e o dos outros. Vendo-a e a tomando para mim, compreendi o que antes não sabia sobre o corpo da mulher. Repito ainda uma vez a Vossa Senhoria que aqueles momentos foram como encontrar-me comigo mesmo, com alguém que eu sabia existir, mas não identificava.


Desde então Tainá passou a ser o meu elo com as coisas e o mundo. Sua voz, inicialmente uma doce mistura de sons indistintos, pouco a pouco se clareou no meu entendimento. Muitas vezes bastava ouví-la e eu a fixava para além da direta significação do que ela me dizia. Eu a compreendia, ainda que não distinguisse o significado de todas as palavras pronunciadas por minha companheira. Quanto mais eu me enrequecia com as lições de língua e de conhecimentos de Coaracy, mas conseguia tornar distinta a voz de Tainá. Assim foi a longo; e a cada dia e a cada encontro com Tainá, mais.

Agora conto a Vossa Senhoria o momento de maravilha.

Uma noite, como já acontecera por tantas noites, eu me adormento na minha cabana, ao calor do fogo constante no centro do bom espaço onde eu repousava tendo como companhias José Pacheco e João Osório. Os dois rapazes levaram muito tempo, como faziam sempre, para cessar de contar, entre risos alegres, os eventos do dia; mas, afinal se calaram lentamente e então eu pude dormir. Sob a crepitação das chamas e o sussurar externo de mil sons e movimentos indistintos, adormeci. No sono, sonhei. Sonhei que estava mais uma vez com Tainá, que caminhávamos sem parar em meio ao bosque de plantas e flores, que não parávamos jamais, acompanhando o correr das águas de um rio que caia depois numa cascata e sentimos o barulho intenso das águas que se transformavam em grandes mantos brancos e aquáticos e íamos sempre adiante a falar, a rir, a falar. Tainá falava alegremente e eu a escutava e compreendia sem maralhar as suas palavras e com ela falava e ela me respondia. Assim estávamos, em quase um êxtase. em meio a flores de todas as cores, ouvindo os cantos de passarinhos que saltitavam nos galhos e escapavam, e os papagaios, os mais variados, que nos acompanhavam sem parar de estrilar, as vozes misturadas ao multicolorido das penas. Assim íamos quando vi nas águas do rio, parada, um cobra imensa, toda iluminada de fogo que das águas nos olhava fixo. Era boitatá!


Acordei com a intensidade da visão de boitatá e me senti como flutuante no ar, meu corpo leve como o sonho. Pela primeira vez, junto a Tainá, eu sonhara na língua de meus novos amigos.

Vossa Senhoria quer saber de uma coisa? A partir daquela noite eu sentia a nova língua quase como o meu doce português. Desde então comecei a viver mais profundamente o meu encontro com Tainá.


Pacheco e Osório I


Naquele dia da condenação definitiva à grande solidão, desesperado eu estava na praia tendo ao lado o iracundo Antônio Fragoso e, um pouco à parte, a multidão de homens e mulheres ignara de tudo. Me lembro bem de quando vi os jovens que a medo saiam da mata. Tinham ainda as roupas banhadas pela nadada de fuga das caravelas, agora já quase indistintas no horizonte. Eu os via e não os compreendia. Eles, contrariamente, se mostravam sorridentes e felizes, enquanto eu chorava à vista das naves que se confundiam mais e mais com a linha do horizonte. A alegria deles quase me enfurecia. Que fazeis aqui? A armada está partindo para sempre. Disso nós sabemos. Mas, então, por que não estais lá? por acaso alguma loucura vos impeliu a assumir o nosso desespero? ou vos fez perder o lume da razão ao ponto de abandonar o porto para onde nos levam os nossos sonhos? que loucura é essa que conduz outras presenças cristãs aonde pensávamos que doravante iria morar somente a nossa desesperação? Certo, é uma loucura o que nos impeliu até aqui, Afonso Ribeiro, mas não aquela que dizes tu. A nossa é loucura da escolha livre.

Pacheco e Osório logo se adaptaram bem à nova vida. Quando estávamos na cabana, nós quatro, eles não paravam de mexer-se e falar e rir. Não davam atenção nem mesmo às reações truculentas de Antônio Fragoso. Por isso pularam e dançaram de alegria diante de mim no dia que Fragoso deixou a cabana comum por uma outra somente sua e mal-feita pelas suas mãos…

Osório e Pacheco pareciam desde o primeiro dia muito diferentes de mim quanto às coisas da nova vida. Enquanto eu me fechava em mim, eles procuravam sempre a companhia dos outros. Diante dos homens e das mulheres nus eles agiam como se nada de diverso acontecesse. Eu pensava muitas vezes sobre o que se passava com os dois rapazes para conseguir a naturalidade com que se moviam com a gente nova. Eles confraternizavam com todos e as raparigas mostravam grande prazer da companhia deles. Muitas vezes os vi que corriam e gritavam alegres pelos bosques. Nadavam nos rios, subiam nas árvores, sumiam-se na mata. E a cada noite retornavam à cabana como se tivessem passado sempre o mais belo dia de suas vidas.

Osório tinha uma companheira mais fixa, Uiara, muito bonita, outra amiga de Tainá. Uiara era pequenina, cabelos pretos longos. Quando pintava o corpo com o vermelho de urucu, seus cabelos pareciam mais pretos e mais brilhantes, os olhos e os dentes mais luminosos. Uiara se parecia muito com Tainá, mas era de natureza menos calada. Não estava jamais muda e quando corria atrás de João Osório empinava ainda mais os peitos salientes.

José Pacheco vivia junto com todas as raparigas e não se viu que ele se isolasse mais longamente com uma delas em especial.

Antônio Fragoso odiava os dois rapazes por causa da amizade que todos, homens mulheres e crianças, demonstravam a cada momento por eles. Odiava principalmente a amizade entre os jovens da aldeia e os dois ex-marinheiros transformados agora em caçadores e pescadores. Antônio Fragoso nunca fora aceito pelos homens da aldeia e jamais lhe foi permitido de participar nas caças e pescas coletivas.

Osório e Pacheco me surpreendiam sempre. Aprenderam logo muitos cantos dos nossos amigos, a dançar as suas danças, até mesmo a beber o cauim forte nas noites frias das grandes festas, mesmo se não amavam beber em geral senão água.

Um dia me surpreenderam definitivamente. Era já o entardecer e de longe, como acontecia todas as tardes, ouviam-se vozes de homens de volta do último banho de rio. As vozes corriam pela mata e se aproximavam da entrada da aldeia. De repente, vi-os entrar pelo terreiro e esparramar-se pelas cabanas. Em meio a eles, alegres e felizes como sempre apareciam João Osório e José Pacheco nus, completamente. E assim falavam com este, abraçavam aquela, tomavam nos braços os curumins, principalmente o miudo de Iapinari, o amigo predileto de ambos e que era o melhor caçador da aldeia.

(Continua)

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