domingo, 3 de outubro de 2010

Arca das ninharias - Uma História Prodigiosa

Augusta Clara de Matos


Chegaram os tempos a que alguém chamou dos prodígios e tudo se pôs em movimento.

As terras ficavam longe neste país pequenino. Não havia auto-estradas. Só um bocadinho. Levava tempo a ir de um para outro lugar. Mas ninguém se importava. Estava tudo em movimento. A vida, a alegria, a felicidade, as pessoas, o sonho.

Nesse dia, no fim da sessão, ele aproximou-se daquela mulher que viera doutra cidade, para tirar uma dúvida, obter um esclarecimento. Olhou-lhe os olhos e o sorriso e ficou a saber tudo. Já não precisava de esclarecimentos. Ela não deu por isso e foi-se embora.

Algo nele se tornou um enigma. Ninguém percebeu, mas sempre a quis encontrar, não procurar, só encontrar. A vida tem rédea curta e não havia auto-estradas.

Passam os anos e afastamo-nos daquele ponto em que o zénite teria sido outro, se … Os “ses” que dominam os nossos caminhos, os “ses” decisivos e a que não podemos escapar. Digam o que disserem, eles é que mandam.

Somos felizes? Talvez sejamos. Mas o encantamento, a felicidade completa é dos “ses”, esses tiranos donos dos nossos destinos. Atiramo-los para o lixo quando seguimos um “se” e não outro. E vamos em frente, ou às curvas, tanto faz.

E eles foram, também. Ela sem nunca ter dado por isso, ele toda a vida buscando aqueles olhos e aquele sorriso por todo o lado.

Que casa, que prédio, que rua, que número de porta a esconderia? Que raio, o mundo não é assim tão grande, e o país ainda menos! Como podia admitir que não fosse possível encontrá-la? Ou seria o seu amor que não chegava? Ouvira contar histórias exaltantes em que amantes davam a volta ao mundo, se fosse preciso a volta à vida, para encontrarem aquele outro ser que sabiam, sem ninguém lhes ter dito: era o seu, o único, mais nenhum. E ele não fora capaz. A vida tem mesmo rédea curta.

Mas os “ses” não são só velhacos, também são caprichosos. Às vezes, deixam a vida ir andando e, de repente, metem-lhe um pé à frente “Eh, pára aí que tenho uma surpresa para ti!”. Malandros, quando já andamos tão cansados do caminho que queremos lá bem saber o que, há muito, ficou para trás.

E os “ses” quiseram dar-lhes uma nova oportunidade. Os inovadores caminhos do mundo, também. Ela foi às cegas e continuou a não dar por nada. Ele sim, mas tinha sido contagiado e resolveu manter o enigma por mais algum tempo. A ela, um sonho desvendou-lhe a verdade.

E, agora, o resto da história não sei porque eles ainda não me contaram. E, por indeterminações, não chego lá.

8 comentários:

  1. e foi na escolha dos ses que escolhi outro lugar, onde não há nada a escolher, este que vês, entre o se e se. Gostei, Augusta Clara.

    ResponderEliminar
  2. Eu também gostei. Nunca te aconteceu sentir que quando fizeste uma escolha, indo por um de dois caminhos, te desdobraste em duas Augustas Claras e a outra foi pelo caminho que tu preteriste? Essa ideia em mim tornou-se tão recorrente que hoje em dia já sinto que as coisas são mesmo assim, que as aventuras que ficaram por ter foram tidas num mundo paralelo. Talvez isso se deva ao meu optimismo e ao facto de não gostar de ver morrer escolhas bonitas, sejam elas segundas, terceiras ou penúltimas. Mas é, seguramente, uma forma de desprender os ses da minha vida, de não pensar mais neles, de os deixar dissipar-se nas vidas dos meus outros eus, que nascem justamente a cada se. Para mim, por isso, e em dupla leitura, o se... mente. E, como dizia o Pessoa, "a mentira não tem ninho" (...)"Tudo é verdade e caminho".

    ResponderEliminar
  3. Marcos, estou tão contente por teres vindo comentar o meu texto.Acho que tenho alguma coisa a ver com o que tu dizes, sim. Se calhar, é por isso que, agora, vivo mais os sonhos mesmo sabendo que são isso mesmo.Vivo-os tão em paralelo com a realidade - eu não sei se é a realidade, é o que parece no dia-a-dia -, que às vezes me esqueço de lhes dar um desconto.

    ResponderEliminar
  4. Deste-lhes um conto. Boa escolha. Vês?

    ResponderEliminar
  5. e as saudades que temos do que nunca vivemos? por lá andam esses 'ses'...

    ResponderEliminar
  6. E como é bom encalharmos, de vez em quando, em casa dum à conversa. E as saudades do futuro? Acho que são aquelas que eu mais tenho.

    ResponderEliminar
  7. Que bonito e poético conto, que eu tinha deixado passar ao lado. Tantos "ses" atravessam o nosso caminho! e não há hipótese de saber qual o que deveríamos ter seguido ou evitado. Não há hipótese de saber a rua ou a porta em que vivem muitos dos nossos sonhos. E se sabemos a rua ou a porta, já não é o sonho mas a realidade que lá vive.

    ResponderEliminar