sábado, 13 de novembro de 2010

Armando Silva Carvalho, “Anthero, Areia & Água”(Lisboa, Assírio & Alvim, 2010)

Manuel Simões

Na revista “Colóquio/Letras” de Janeiro-Abril de 2010, publicou Armando Silva Carvalho um belíssimo poema com o mesmo título, composição que reflectia sobre o autor das “Odes Modernas”, por vezes em tom confessional, como o que se observa nos três versos finais: “Consigo decifrar as pegadas de Anthero/ A caminho do supremo/ Nada”. Mas antes já se antecipava o que viria a ser este livro, numa empatia de denúncia que o discurso deixava explicitamente perceber: “Direi depois se puder/ E em livro/ As causas desta minha decadência/ Já surda à voz das grandes multidões,/ Cansadas também elas/ Das palavras que lhes deitam por cima como bombas/ Em árias suicidas/ No palco da mentira universal,/ Como ele também dizia”(p.9).

Ora o livro aí está com as marcas de uma escrita inconfundível, desde que se revelou com “Lírica Consumível” (1965), passando por “Sentimento dum Acidental” (1981), “Canis Dei” (1995), “Sol a Sol” (2005), “O Amante Japonês” (2008), para citar apenas alguns títulos da apreciável e originalíssima produção poética do Autor. Agora, ao longo dos poemas de “Anthero, Areia & Água” a voz poetante passou a ser desempenhada por Antero, assumindo-se o Autor como espelho que reflecte o pensamento anteriano, recuperando por vezes o tempo histórico e a vertente ontológica: “Foi ontem, o início das Conferências,/ Fui eu quem levantou o comum pendão das Ideias,/ Revolução, Livre Pensamento, Democracia,/ E (oh, horror!) Socialismo”(p.75).

Inspirando-se este texto na leitura das “Cartas de Antero”, seria inevitável a referência a eventos, a polémicas que envolveram a geração (“Era o Lutero de Quental, diziam./ Não anti-Cristo, apenas anti-Castilho”) e sobretudo aos grandes sistemas que (in)formaram um século, aqui sintetizados de modo exemplar: “Tremendíssimo século dezanove,/ O meu, o de Marx (que tão mal conheci), o de Freud/ (de quem mal ouvi falar), da Ciência que surge em maiúscula/ Como uma nova jóia na coroa metafísica/Dos espaços febris do pensamento” (p.96).

Neste diálogo profundo com o tempo e o contexto da obra poética de Antero, o sujeito enunciador parece fundir-se por vezes entre os dois poetas e o discurso adquire assim uma contemporaneidade poética através de processos hermenêuticos que restituem força ao sentido das palavras. Exemplo deste processo é o poema cujo título (“Reprimenda ao Autor”) é um indicador da fusão empática de que se falou atrás, onde parece evidente a base do fascínio e da sua força de atracção, a razão da mesma perplexidade perante as coisas e os seres: “O presente alimenta-se da confusão dos euros e muito futebol./ As massas, meu caro, as massas não sofrem/ As insónias do doente nervoso,/ Não leram, passado mais de um século,/ O meu Proudhon, o meu Hegel de alcance reduzido/ Em soluções desportivas ou em pontas de lança justiceiros” (p. 86). É um segmento textual, este, talvez mais sereno mas não menos cáustico do que é habitual na escrita de Armando Silva Carvalho, escrita que aqui tenta fazer emergir o vulto escondido e algo misterioso do poeta da razão mas igualmente do misticismo.

De certo modo, este livro excelente pode ler-se como um ensaio, em forma de grande poesia, sobre as ideias do maior animador cultural da famosa geração de 70.

Sem comentários:

Enviar um comentário