sábado, 6 de novembro de 2010

Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio: Classe Média Radical

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Os portugueses estão certamente perplexos ante a onda de greves que se anuncia e a agitação social que a precede por parte de magistrados e funcionários, forças armadas e de segurança, médicos, etc. A perplexidade é dupla. Por um lado, a agitação social não está a ser criada por aqueles que estão a ser mais duramente atingidos pela crise económica, pelos trabalhadores da indústria com emprego cada vez mais precário, pelos desempregados, vítimas da deslocalização de empresas, pelos trabalhadores imigrantes clandestinos obrigados a aceitar um horário duplo de trabalho para ganhar o salário mínimo (e, às vezes, menos que isso), pelos idosos dependentes de um serviço nacional de saúde cada vez menos acessível. Pelo contrário, a agitação social está a ser criada por trabalhadores que compõem a classe média (por vezes, classe média alta), com segurança de emprego, detentora de direitos sociais que não estão ao alcance da grande maioria dos cidadãos e mesmo de privilégios chocantes à luz da situação que o país vive. Por outro lado, é grande a desproporção entre a agressividade da contestação e a relativa moderação das reformas propostas pelo governo, todas elas destinadas a parificar, gradual e selectivamente, os benefícios de alguns “corpos especiais” aos de um corpo social já de si beneficiado em relação aos restantes trabalhadores portugueses, os funcionários públicos.

A resolução deste puzzle é complexa e passa pelas seguintes ideias. Primeiro, a contestação social, sobretudo no campo do trabalho, depende hoje muito da segurança de emprego. Quanto mais precário é o emprego, menor é a capacidade para lutar contra a sua precarização. Segundo, o sindicalismo português está a abandonar a sua tradicional base operária. Esta, embora continue a alimentar a retórica dos dirigentes sindicais, é cada vez mais frágil e incapaz de sustentar acções de reivindicação concretas. Terceiro, a agitação social é protagonizada por uma pequena faixa da população activa, mas com grande poder social e a cumplicidade de uma comunicação social conservadora, interessada na desmoralização do Estado e incapaz de uma pedagogia activa sobre o que está verdadeiramente em causa. Quarto, a sociedade portuguesa é uma das mais injustas da Europa e a mobilidade social que se verificou entre nós nos últimos trinta anos está bloqueada. Ela assentou, por um lado, na escola e nas qualificações e, por outro lado, no Estado enquanto sector de referência, tanto a nível salarial como nas condições de emprego e é nestes domínios que os bloqueios são mais visíveis. Em 1999, a probabilidade de um filho de um operário aceder a uma profissão liberal era sete vezes menor que a de um filho de um profissional liberal. Estes bloqueios agravaram-se depois de 2000 com a crise financeira do Estado, a crise da economia e a desvalorização geral dos diplomas. Quinto, o Estado tem sido um agente “anómalo” de promoção social. Por um lado, devido ao contexto geral do recrutamento inicial, tem permitido a ascensão a cargos de chefia a pessoas com baixas qualificações. Por outro lado, os desequilíbrios na organização dos interesses tornaram possível que certos grupos, com maior poder negocial, obtivessem privilégios injustificados, porque não vinculados directamente à natureza das funções. Constituíram-se sectores e corpos especiais e a sua composição tem sido sempre problemática.

É importante que o governo seja firme nos princípios e flexível na sua aplicação e que os grevistas se centrem nas condições dignas para o exercício das suas importantes funções, de modo tal que a sua contestação não seja vista como uma luta pelos despojos de um Estado cada vez menos disponível para a maioria dos cidadãos.

(Publicado na revista "Visão" em 29 de Setembro de 2005)

5 comentários:

  1. É um excelente e corajoso texto. Os que mais privilégios têm são os que se manifestam e não é a favor dos que mais precisam. Muita da culpa do estado do país, está na arrogância das corporações, na irresponsabilidade dos dirigentes sindicais que prometem o céu e a terra a quem lhes paga as quotas.Magistrados, professores, a protestarem? Essa tem, realmente, piada!

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  2. Ia abordar este tema no próximo post...
    Vou,não vou...

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  3. vai, Carlos, dá impressão que só o governo é que tem culpas...

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  4. O sindicato dos patrões está a mostrar à classe média que o tempo das vacas gordas (carros, casas, viagens, clubes, ginásios, restaurantes, empregadas, escolas e escolinhas, amantes e diamantes,...) pode virar tempo de vacas magras. É-lhes pedido o sacrifício de se misturarem com os dos megafones, dos protestos, dos cartazes, das bandeirinhas... Como será no próximo 1º de Maio?

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  5. Luís,
    Eu bem que não quero bater-te, mas a tua distracção da realidade é, por vezes, excessiva. Diga-se que BSS, no artigo, também parece esquecer as razões de muitas coisas, como a história dos "privilégios" dos funcionários públicos e um "pequeno pormenor": é objectivo de bem governar piorar a situação de quem está melhor, em vez de melhorar a de quem está pior?
    Não são os que mais privilégios têm, mas "os que podem" que se manifestam! E a classe operária está mais frágil porque se reduziu e transformou e as leis do trabalho já são, nalguns casos, piores que no tempo do fascismo...
    Sei de jovens familiares e amigos que queriam aderir à greve geral, mas não o farão: porque são precários, têm filhos, são "avaliados" (por capatazes que passaram pelo mesmo e têm medo de ficar sem o lugar) pelo n.º de faltas - mesmo que por doença ou assistência a um filho -, pelo cumprimento de ritmos de trabalho esgotantes, desumanos e não raro ilegais (até neste Código do Trabalho, que é um hino à vileza) e ninguém ousa convocar a inspecção do trabalho..., são "geridos" de acordo com o princípio da sujeição a "pressão", insegurança e medo constantes – imbecil mas "sagrado" para o monturo de idiotas, formatados por faculdades que lhes enfiam falsas receitas pelo gargalo abaixo e demasiado broncos para questionar sequer o que engolem. Lucros: 35 suicídios - conhecidos - na France Telecom; quantos noutros lados?, quantos milhares de depressões, quanta produtividade perdida, em tempo e qualidade? A sindicalização é "desaconselhada" e, se concretizada, secreta! Isto acontece, sobretudo, nos grandes grupos empresariais e seus "subempreiteiros". Queres conhecer outro "princípio" transmitido aos noviços: a Empresa está acima da vida familiar, que não pode interferir no "desempenho" do escravóide precariamente contratado!
    E não digas que são casos raros, que te despejo em cima centenas ou milhares de casos cuja desumanidade te faria subir pelas paredes! Não publicamente, que a clandestinidade já regressou, pelo menos aos Sindicatos.
    Mas esta rapaziada, com justificado receio de integrar esta luta, também engole uma coisa - amarga mas fértil: a revolta; que um dia há-de bolsar em cima dos seus torcionários, se a sua estupidez gananciosa teimar em prolongar-se.
    A grande questão é: atrás de quem, de que lema, de que facho?
    Porque é muito fácil, em tais circunstâncias, as revoltas individuais, somadas (e dispersas) em multidões, deixarem-se conduzir por demagogos, como os persas que, reduzidos à extrema miséria por um "desenvolvimento" cego, se lançaram nos braços dos ayatollahs, para se descobrirem num Irão ditatorial.
    Privilegiados são os accionistas da PT, por quem, indecorosamente, a administração resolveu distribuir mais de duzentos milhões de inesperados euros: esses é que não se manifestam, de certeza. Nem a gajada toda que, por esse mundo global fora, pariu e cevou a Besta-Crise, os mesmos com quem os governos querem matar a dita!
    Todos os que trabalham ou trabalharam têm o direito de não serem esbulhados dos seus "privilégios", quantas vezes adquiridos num percurso onde o sangue dos que por eles se bateram ainda ressuma; e de recusar sacrifícios que não beneficiarão os seus descendentes, mas - e só - os descendentes dos mesmíssimos filhos da puta que agora os exploram.
    Ah! Isto não é moldado pela minha ideologia (senão teria de ser mais bem explicadinho). É fruto da raiva contra quem não respeita a dignidade dos outros: nada a fazer, que já nasceu comigo. A ideologia chegou depois.
    Paulo Rato

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