sábado, 13 de novembro de 2010

A caminho de casa

Ethel Feldman

Era Páscoa e ela levantava o cálice da avó em tributo da terra prometida. Da cor do vinho doce era a vontade daqueles que motivados pela mesma vontade estampavam o sorriso na face. No decorrer das tardes as canções ninavam as crianças ainda de colo e ela aprendia a cantar porque o futuro prometia bem-estar.

Os velhos contavam histórias de uma terra sem nome onde o homem mata outro homem, sem nunca saber porquê.

Na minha infância, minha mãe falava da guerra, da dor e miséria dos homens sacrificados. Antes de morrer cantavam.

No fim da rua a padaria vendia pão ázimo. Na esquina o rabino apertava o passo em busca da esperança.

Meu avô vendia relógios, de porta em porta. Minha avó ajustava a vida, dia a dia.

As escadas da escola cresciam a cada degrau consumido. As brincadeiras de roda prometiam um namorado casamenteiro.

As mulheres eram putas porque o país que as acolheu dava o pão em troca da fornicação.

Os homens vendiam chapéus de chuva em pleno Verão, esperando a colheita no Inverno seguinte.

À noite fechavam as mãos em cada mão, faziam uma roda e riam da vida que a miséria não assistia.

Cantavam o hino da terra que sonharam em busca de paz.

O mundo sabia de cor, a cor da dor de quem nunca teve a sorte de nascer imperador.

O peixe era doce e cru. A beterraba avinagrada.

A vontade de ser feliz era tanta como a tua agora que acabas de nascer.

O jejum era dos pobres que o faziam dia após dia.

Na rua Newton Prado moravam os meus avós. Vizinhos da vida viajaram sem regresso com um sorriso que não esqueço.

O homem mata o homem e nunca sabe porquê.

As mulheres vendem o prazer em troca da vida apetecida.

Bendita a memória que me assombra com um sorriso sem fim.

Nasce o dia agora, promessa de outro dia que nasce outra vez.


(Ilustração de Adão Cruz)

4 comentários:

  1. Comovente e belo texto da Ethel. Simples e belo quadro do Adão. Gostei muito de vê-los em conjunto.

    ResponderEliminar
  2. Lindo poema dentro da construção de que eu gosto

    ResponderEliminar
  3. E eu fico envergonhada convosco. Beijos sem fim e outros de novo. :-)

    ResponderEliminar
  4. Um belo texto , prosa ou poema , não interessa a forma.

    ResponderEliminar