quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Deus como problema (2)





Adão Cruz

Algumas das melhores e mais lúcidas pessoas que conheço cresceram sem que lhes fosse imposta qualquer ideologia ou religião. Quando muito foram-lhes ensinados alguns dos princípios consagrados na sociedade, elementos indispensáveis para o equilíbrio individual e colectivo: a lealdade, a integridade, a honestidade, o sentido de justiça, a solidariedade, a fraternidade e o amor pelos outros.
Dispensam Deus, seja ele qual for, mas não abdicam destes princípios que integraram a sua formação, feita essencialmente de lúcido querer e liberdade responsável.

Dizia-me o meu amigo, que não escolhendo a vida nem a morte lhe foi dado viver, e se foi apenas para aproveitar a vida ao máximo porque ela é breve, então os pretos que vão para o inferno, dos fracos não reza a história, os pobres que trabalhem, não importa o abate de crianças para lhes roubar os órgãos, a escravatura, o prazer a qualquer preço, a exploração dos menos hábeis… para quê pruridos morais?
Assim sendo, respondi eu, a fé parece não passar de uma atitude oportunista, de uma estratégia egoísta, de um cartão de crédito, uma espécie de Banco da fé onde se vai depositando o que se convencionou ser as nossas obras morais, a fim de garantir a entrada no céu, no país das maravilhas onde só cabem os eleitos, os que melhor rechearam os cofres de uma questionável moralidade, à boa maneira capitalista-aforradora.
Sem Deus e sem fé como pode conceber-se a ausência de espírito racista, elitista, classista de muitas das mais nobres pessoas que conheço? Como é possível que tantos homens na História, sem qualquer tipo de crença religiosa nem esperança de se sentarem à mesa de Deus, tenham praticado em elevado grau a solidariedade, a fraternidade e o amor pelos outros?
Com Deus e com fé, como é possível ter-se cometido e continuar a cometer tantos crimes repugnantes? Ainda bem que, como diz Saramago, os rios de lágrimas chorados pelas vítimas do catolicismo Vaticano empaparam as lenhas dos seus arsenais inquisitórios. Mas aqui se engana – ou talvez queira parecer que se engana – Saramago.
A morte aos infiéis é muito mais evidente do lado do cristianismo, na medida em que as imundas baratas são esmagadas diariamente às centenas pelos chinelos de todos aqueles que têm o sagrado direito e o sacrossanto dever de as esmagar nos momentos e nas alturas próprias.
Simplesmente, os infiéis não são apenas os que não rezam, nem são propriamente definidos como os que não têm fé, mas são todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se opõem e criam obstáculos à fé, que o mesmo é dizer, a todos os interesses que se servem da fé e a quem a fé serve e sempre serviu.
Por outro lado a fé já não é bem o que era, nem são os mesmos os servidores da fé. Hoje, a fé talvez não passe do anestesiante rótulo de uma gigantesca garrafa planetária cujo conteúdo é diariamente destilado na base de ingredientes como exploração, dinheiro, poder e domínio.
“A moderna versão fundamentalista e violenta do islamismo, a palavra de ordem por excelência, todos os dias insanamente proclamada”, no dizer de Saramago, não me parece comparável “ao cristianismo nos tempos do seu apogeu imperial”, nem à moderna versão fundamentalista e violenta dos inquisidores deste lado. Até porque os chinelos que matam as imundas baratas de um lado são completamente diferentes dos chinelos que matam as imundas baratas do outro lado.
Hoje, de um dos lados, chamam-se aos chinelos bombas e mísseis, que esmagam sem dó nem piedade centenas de milhares de “infiéis” enquanto o diabo esfrega um olho, em nome de Deus, a quem chamam God. Do outro lado são as próprias entranhas cheias de explosivos que em nome de Deus, mas também da raiva, do ódio, da revolta e do desespero tentam fazer rebentar a sua própria impotência.
E sempre Deus como problema! De um lado os “bons” em nome de Deus, do outro lado os “maus” em nome de Deus e vice-versa. No meio uma palavra que não se sabe a quem pertence ou a quem assenta melhor: “terrorismo”.
Os modernos inquisidores, em estreita colaboração e comunicação com todas as hierarquias laicas e não laicas que se dizem emissárias de Deus, têm nomes laicos e vulgares, mas detêm todo o poder necessário para enfiar, de uma rajada, vinte mil mísseis sobre uma cidade de infiéis, em obediência às decisões de um moderno Santo Ofício sem rosto, não necessitando do aval de nada nem de ninguém que, legalmente e por internacional acordo, detém os poderes de decisão.
O Direito Internacional e a soberania dos povos valem o que valem, podendo escalonar-se desde o sagrado ao material descartável, conforme as circunstâncias e as ocasiões. De nada vale lembrar que há um conjunto de valores que são absolutos, e portanto não podem ser relativizados, ou que há um núcleo ético que, a não ser preservado, faz descer o Homem à escala do monstro.

(Continua).

(ilustração de Javier de Juan-Creix)


2 comentários:

  1. Sem dúvida que Deus serve para muita coisa que Ele, a existir, nunca permitiria. Serve para que se desculpem assassinatos, guerras, pobreza...tudo é abençoado, comprado. Em nome dele tudo é possível com a certeza da redenção. É o contrário da noção que tenho e que me ensinaram de Deus.Nisso acertas no ponto!

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  2. Que arrepio sabermos que há gente que não diz mas é assim que pensa: os que não têm hipótese que se lixem, é porque não foram capazes. O tal darwinismo social que, infelizmente, é tida como uma teoria credível em vez de ser fortemente combatida. Agora sou eu que digo Porra!

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