sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O consumo consome o amor

Carlos Loures


Numa arrumação de livros que tive de fazer recentemente, descobri um livro que tinha lido quando da sua publicação que me impressionou e depois esqueci. É uma edição de 1995, mas (segundo a anotação que fiz na página de rosto) foi comprado em 1997 – “Las reglas del caos”, de Santiago Alba Rico. Santiago Alba Rico é um ensaísta e filósofo nascido em Madrid em 1960. Licenciado em Filosofia pela Universidade Complutense de Madrid, é um homem de esquerda, de formação marxista, tem publicado vários ensaios abordando temas de disciplinas como a filosofia, a antropologia e a política. Editor de diversas revistas de carácter político e cultural é, participante activo em meios de comunicação alternativos.

Solidário com a causa islâmica e vivendo actualmente na Tunísia, traduziu para castelhano autores árabes, como o poeta egípcio Naguib Surur ou o escritor iraquiano Judayr Mohamed. Não vos vou falar senão num pormenor deste longo ensaio, cuja leitura aconselho vivamente. Dedicar-lhe-ei proximamente um artigo, pois as questões que levanta, nomeadamente a das regras que regem o caos, são muito interessantes. Vou hoje apenas referir-me à diferença que Santiago Alba Rico estabeelce entre utilizadores e consumidores.

A relação entre valor de uso e valor de troca, outrora base de negócios importantes, quase deixou de funcionar, pois o valor de uso. foi substancialmente depreciado. O que é usado, o que não está em moda, o que funcionando perfeitamente foi ultrapassado por um modelo mais recente, quase não tem o valor. Quando há tempos me quis desfazer de uma mobília, quem aceitou ficar com ela fez-me o favor de vir a minha casa e levá-la. Vendê-la estava fora de questão. Na zona onde moro, vejo com frequência junto dos contentores, móveis, objectos, que há anos teriam valor comercial. Um colaborador nosso, há tempos quis oferecer umas centenas de livros a uma biblioteca municipal – resposta do bibliotecário: «Traga cá os livros e nós escolhemos os que nos interessarem».

Lembra-nos como em certos países do chamado Terceiro Mundo, as pessoas vestem roupas cerzidas, sapatos remendados e deslocam-se em automóveis que na nossa sociedade há muito teriam sido considerados sucata. Todos os anos deitamos fora roupas em bom estado, porque já não se usam. O hábito de trocar de carro, leva-nos a vendermos por tuta e meia carros que funcionam perfeitamente. Isto é, o modelo de sociedade em que vivemos, alimenta-se do consumo supérfluo. Os jovens vendem a alma ao diabo por umas sapatilhas da Nike. O choque consumista nas famílias pobres é de efeitos devastadores. Incapazes de compreender por que razão os pais insistem em os vestir na loja do chinês, jovens enfurecidos vão ao ponto de assaltar estabelecimentos. Trazem as sapatilhas, as t-shirts, as jeans, das almejadas marcas (muitas vezes de qualidade semelhante à da loja do chinês e confeccionadas também em países do Terceiro Mundo em regime de quase trabalho escravo). Mas ostentam a marca o que, para eles, faz toda a diferença.

Publiquei há tempos um texto em que partia da transcrição da entrada “Consumir” no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro machado, para a considerações sobre o caos consumístico em que todos os valores da nossa sociedade estão a mergulhar. Dizia: Consumir: «v. tr. (do lat. Consumere). Gastar, destruir, extinguir, corroer até completa destruição. Enfraquecer, abater.» E continua com muitas outras acepções terminando com «Enganar, iludir». Pelo meio, tem as acepções mais comuns - «Dar extracção, procurar géneros alimentícios, artigos fabricados, etc.\\ Despender, gastar ||» e outras menos comuns «Matar, assassinar. || Devorar em silêncio. E entra no foro da liturgia católica: «Desfazer a hóstia na boca. || Receber (o sacerdote), na missa, o corpo e o sangue de Cristo, sob as espécies do pão e do vinho consagrados.»

Está aqui a entrada quase toda, não escamoteei acepções importantes. Não esqueçamos, porém, que a primeira acepção, é sempre a mais importante - «gastar, destruir, extinguir, corroer…» Em épocas de penúria, ansiávamos por poder comprar, consumir. Mas estou desapontado com a abundância da oferta que veio desembocar no consumo.

Corroer até à completa destruição, eis uma boa definição do que é o consumo, quando elevado à categoria de projecto de vida. Vou contar-vos uma história. Um homem, cujo nome é relativamente, conhecido e com o qual privei profissionalmente durante algum tempo, perseguido pela polícia política na sequência do 18 de Janeiro de 1934, a chamada Revolta da Marinha Grande, fugiu para Espanha em cuja Guerra Civil combateu integrado no Exército Republicano (pois casara com uma valenciana). Derrotada a República, esteve num campo de refugiados em França de onde foi evacuado para a União Soviética. Aí viveu e trabalhou até quase ao fim dos anos 60, altura em que foi para Cuba. Por volta de 1970, com mais de cinquenta anos, tendo garantido que não se envolveria em movimentos políticos, foi autorizado a voltar a Portugal com a família. O barco de onde veio de Havana aportou a Valência. Habituado ao rígido racionamento que vigorava, quer na URSS, quer em Cuba, quando entrou pela primeira vez num supermercado, foi por diversas vezes perguntar a uma empregada se podia comprar duas pastas de dentes, depois se podia levar duas ou três latas de feijão, quatro pacotes de lâminas de barbear… até que agastada a empregada lhe disse: - Desde que pague, pode levar o supermercado inteiro - O meu amigo chorou de emoção. Não lhe era fácil conceber tanta abundância à sua disposição. Nesta facilidade de comprar, reside o grande fascínio do consumo – mesmo que não tenhamos dinheiro vivo, podemos sempre utilizar cartões de crédito… Compra-se por impulso, o gesto de tirar os produtos das prateleiras e de os pôr no carrinho é gratuito. Só na caixa nos apercebemos do dinheiro que gastámos. Tem-se a falsa sensação de que as coisas não custam dinheiro.

Ainda há relativamente poucos anos, éramos utilizadores, vivíamos numa economia de poupança – as roupas usavam-se enquanto duravam, os géneros alimentícios não tinham prazo de validade, sendo esta determinada pelo bom ou mau aspecto que os produtos apresentavam, as pastas dentífricas eram gastas até ao fim (havia uns artefactos, primeiro em madeira e depois em plástico, para as espremer), se saíamos de uma sala, apagávamos as luzes… Era, de facto, uma economia e uma cultura de penúria, mesmo para as famílias ditas «remediadas», aquilo a que agora se chama classe média. Hoje, vê-se pessoas com graves problemas económicos, mas que são incapazes de economizar. Não sabem. Nem relacionam o facto de deixarem todas as luzes acesas, de se desfazerem de roupas em bom estado (mas que «já se não usam»), com as dificuldades por que passam e com o facto de a meio do mês já não terem dinheiro e começarem a viver com a conta-ordenado e com o crédito dos cartões levados até ao limite. Nem com o número de chamadas que fazem com o telemóvel, muitas delas (para não dizer a maioria) dispensáveis. Troca-se de carro, embora aquele que se larga possa ser melhor do que o que se adquire. E por aí fora. Consome-se.

Um dos motivos para o aumento do número de divórcios é o facto de ao período (por vezes, prolongado) de namoro, em que os pais continuam a resolver os problemas básicos, se sucede a chamada «vida real» - contas para pagar, coisas para comprar – assuntos «mesquinhos» do dia-a-dia, que dão lugar a discussões mesquinhas e, sobretudo, ao choque de vontades pouco treinadas para serem contrariadas, porque desde o berço foram habituados a não aceitar o não como resposta. E não é uma palavra para ser usada, como qualquer outra. O confronto de vontades, gera discussões e verdadeiros desapontamentos. E aos desapontamentos, seguem-se muitas vezes os divórcios. Habituadas como estão agora as pessoas aos produtos descartáveis, deitam fora uma relação e começam outra.

A geração dos famosos anos 60, a minha, tem graves responsabilidades nesta disfunção. Criámos os filhos seguindo o princípio de que era proibido proibir. Essa educação, que quase se traduziu numa ausência de educação, criou estes cidadãos que, generalizando (o que é perigoso) podemos dizer que é uma geração que não luta pelas coisas, não luta inclusive pelo amor – gasta o amor como se fosse um produto descartável.

Em suma, o consumo também consome o amor.
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Para desdramatizar recordemos esta canção de Luís Portugal «O Dinis dos botões»:

4 comentários:

  1. Há uma fase da vida que a maioria não controla essa necessidade de consumir. Quando acalmamos, verificamos que nem precisamos de carro. Ando de transportes e de taxi se necessário, o meu carro dorme semanas na garagem. E vivo, sem faltas, sem correrias, sem comprar roupa ( espero que não me aconteça como ao burro do espanhol, estava a habitur-se a não comer e morreu..:-) )

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  2. Olha, Carlos, adorei o teu texto. Está lá tudo. Sobretudo esta parte final sobre o não se saber dizer NÃO a nada é muito importante.
    Escreve mais destes.

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  3. E esta canção é óptima. Como é que te consegues lembrar destas coisas é que eu não sei. O que o Luís diz é bem verdade. Ultimamente, quantas vezes tenho pensado que poderia viver com metade ou menos da tralha que tenho.

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  4. Também gostei muito deste texto. Vem muito a propósito.O consumo é realmente causa de muita infelicidade e mesmo da morte do amor.

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