Marcos Cruz
Durante a vida experimentamos várias formas de lidar com o mesmo problema, mas muitas dessas formas são, simplesmente, formas de não lidar com o problema. O problema é a vida ela própria, somos nós - ou, melhor ainda, somos os nós, os nós que somos, cada um de nós.
Hoje sento-me aqui para escrever mais uma forma e não mais do que uma forma, mas uma forma de lidar com o problema. O meu problema.
Não sei quando me dei conta de que tinha um problema, mas provavelmente foi à nascença, ou então não teria desatado a mamar, a chorar, a espernear, a lutar com unhas e sem dentes. Hoje leio pessoas que falam poeticamente sobre a morte, sobre a primeira vez que viram a morte, sobre a incompreensão da morte e a recusa em confrontá-la, em chegar perto dela, em sentir-lhe o cheiro, quando esse cheiro é o mesmo da merda e do leite e a morte é, afinal, o mote da vida.
Mamar, andar, falar, estudar, trabalhar, casar, procriar para que outros mamem, andem, falem, trabalhem, casem e procriem - eis a puta da vida tal como se nos apresenta. Pois eu digo: hoje sei que a minha vida não é isto. Não é só isto, não é necessariamente isto. A minha vida é a minha vida. Por entre essas etapas todas a que não renuncio, a minha vida é também romper a placenta de culpa que me precede.
Entre as formas que já experimentei de lidar com o meu problema encontram-se vários ismos. Todos eles foram sombras que se me descolaram do corpo a cada pôr-do-sol. A cada morte. Hoje não tenho um ismo para dar. Tenho sentimentos intensos, tenho oitos e oitentas, tenho vida em bruto.
Este é o primeiro passo para uma pessoa como eu lidar com o problema. É assumi-lo. É pô-lo cá para fora, dar-lhe luz, dá-lo à luz. Todo o tempo gasto a experimentar formas de não lidar com o problema é tempo pré-Natal, é cadeia genética no sentido mais prisional do termo. Lapidar o diamante exige tê-lo.
Hoje é a hora de o meu problema sair à rua. De sair inteiro, impróprio para consumo. É o dia de vomitar o mundo e dizer que já o trazia dentro, este mundo, há colhões. É o momento de trabalhar para um outro mundo, com as competências todas de quem o conhece como a palma da sua mão, cansada de bater punhetas.
A crise e a depressão acompanharam-me o crescimento - essas, sim, sombras implacáveis -, foram o meu mundo, o meu segredo. Hoje o mundo dos outros conhece-o, estou nu. Tão nu como esse mundo aos olhos de si mesmo. Somos tão verdade com verdade como as batatas são batatas com batatas. O problema, pelo menos o meu, está objectivado.
Portugal é um País, o nosso País. Os mercados são, hoje, o mundo. E o país Portugal cresce ou decresce a mando desse mundo. Porquê? Porque Portugal não existe. Portugal está em coma num leito límbico, com os pés algemados por D. Sebastião e as mãos por Salazar, espelhos virados um contra o outro, reflectindo a infinitude, o cronismo, a inescapabilidade, para o caso de Portugal querer acordar do coma.
Em cada empresa, em cada emprego, a generalidade dos portugueses não atravessa nem um nem outro desses espelhos. São como esquinas à noite. A verdade é que, não o fazendo, a mesma generalidade dos portugueses está a ser atravessada por eles, em cada casa, em cada desemprego.
Chegou, pois, a hora do salto quântico. Aquilo de que sempre estivemos à espera surge com a imagem que menos esperávamos. Valham-nos as leis da física. O corpo, o nosso corpo, o meu, o teu, o dele, o nosso, o vosso, o deles, vai ter de se sentir em todas essas dimensões, únicas e múltiplas, pessoais e universais, o melhor que possa e saiba, e mexer-se, andar para a frente com os seus próprios pés.
Em menos de nada, o segredo do País vai estar tão cá fora como o meu segredo. Um novo espelho nascerá da fricção dos outros dois, como fogo vindo das pedras, e nele poderemos rever-nos, juntos, os que até hoje nem em separado se reviam.
Durante anos, uns, e décadas, outros, muitos de nós estiveram mergulhados em drogas, legais ou ilegais; durante esses anos, esses nós sentiram que o seu mundo estava doente, por não encaixar no mundo dos outros. Hoje, os mesmos nós podem saber que o mundo dos outros é, afinal, o mundo de uns quantos, poucos, muito poucos, que não querem encaixar no nosso mundo. Por isso é que o mundo, o mundo de todos, está em crise.
Chamem-me irresponsável, bipolar, o que quiserem. Sou isso tudo e mais alguma coisa. A minha forma de lidar com o problema é cada um de nós mudar o paradigma, virar o disco, venha quem vier: irmos para dentro cá fora, deixarmos de nos adiar em antidepressivos e sermos nós os antidepressivos do mundo. Cada um de nós.
Talvez assim se desatem os nós e o meu problema seja o teu e o dele e assim sucessivamente até, quem sabe, deixar de ser um problema.
(ilustração de Adão Cruz)
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
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Marcos, como eu gosto das pessoas como tu que sabem pôr-se a nu, sem medo, perante os outros. Se todos fizessem o mesmo pelo menos alguma coisa (já não sou muito exigente)teria mudado. Um beijinho para ti e continua a escrever que eu gosto muito dos teus texos.
ResponderEliminarBom texto, mas não seremos capazes de desatar os nós com os nós dos outros. temos que ter um nó comum, mesmo que não seja comum, faze-lo comum e, então, talves o problema se desate. Até lá, andaremos todos a desatar nós que não ajudam a desatar os dos outros , assim, batatas.
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