quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O problema

Marcos Cruz

Durante a vida experimentamos várias formas de lidar com o mesmo problema, mas muitas dessas formas são, simplesmente, formas de não lidar com o problema. O problema é a vida ela própria, somos nós - ou, melhor ainda, somos os nós, os nós que somos, cada um de nós.

Hoje sento-me aqui para escrever mais uma forma e não mais do que uma forma, mas uma forma de lidar com o problema. O meu problema.

Não sei quando me dei conta de que tinha um problema, mas provavelmente foi à nascença, ou então não teria desatado a mamar, a chorar, a espernear, a lutar com unhas e sem dentes. Hoje leio pessoas que falam poeticamente sobre a morte, sobre a primeira vez que viram a morte, sobre a incompreensão da morte e a recusa em confrontá-la, em chegar perto dela, em sentir-lhe o cheiro, quando esse cheiro é o mesmo da merda e do leite e a morte é, afinal, o mote da vida.

Mamar, andar, falar, estudar, trabalhar, casar, procriar para que outros mamem, andem, falem, trabalhem, casem e procriem - eis a puta da vida tal como se nos apresenta. Pois eu digo: hoje sei que a minha vida não é isto. Não é só isto, não é necessariamente isto. A minha vida é a minha vida. Por entre essas etapas todas a que não renuncio, a minha vida é também romper a placenta de culpa que me precede.

Entre as formas que já experimentei de lidar com o meu problema encontram-se vários ismos. Todos eles foram sombras que se me descolaram do corpo a cada pôr-do-sol. A cada morte. Hoje não tenho um ismo para dar. Tenho sentimentos intensos, tenho oitos e oitentas, tenho vida em bruto.

Este é o primeiro passo para uma pessoa como eu lidar com o problema. É assumi-lo. É pô-lo cá para fora, dar-lhe luz, dá-lo à luz. Todo o tempo gasto a experimentar formas de não lidar com o problema é tempo pré-Natal, é cadeia genética no sentido mais prisional do termo. Lapidar o diamante exige tê-lo.

Hoje é a hora de o meu problema sair à rua. De sair inteiro, impróprio para consumo. É o dia de vomitar o mundo e dizer que já o trazia dentro, este mundo, há colhões. É o momento de trabalhar para um outro mundo, com as competências todas de quem o conhece como a palma da sua mão, cansada de bater punhetas.

A crise e a depressão acompanharam-me o crescimento - essas, sim, sombras implacáveis -, foram o meu mundo, o meu segredo. Hoje o mundo dos outros conhece-o, estou nu. Tão nu como esse mundo aos olhos de si mesmo. Somos tão verdade com verdade como as batatas são batatas com batatas. O problema, pelo menos o meu, está objectivado.

Portugal é um País, o nosso País. Os mercados são, hoje, o mundo. E o país Portugal cresce ou decresce a mando desse mundo. Porquê? Porque Portugal não existe. Portugal está em coma num leito límbico, com os pés algemados por D. Sebastião e as mãos por Salazar, espelhos virados um contra o outro, reflectindo a infinitude, o cronismo, a inescapabilidade, para o caso de Portugal querer acordar do coma.

Em cada empresa, em cada emprego, a generalidade dos portugueses não atravessa nem um nem outro desses espelhos. São como esquinas à noite. A verdade é que, não o fazendo, a mesma generalidade dos portugueses está a ser atravessada por eles, em cada casa, em cada desemprego.

Chegou, pois, a hora do salto quântico. Aquilo de que sempre estivemos à espera surge com a imagem que menos esperávamos. Valham-nos as leis da física. O corpo, o nosso corpo, o meu, o teu, o dele, o nosso, o vosso, o deles, vai ter de se sentir em todas essas dimensões, únicas e múltiplas, pessoais e universais, o melhor que possa e saiba, e mexer-se, andar para a frente com os seus próprios pés.

Em menos de nada, o segredo do País vai estar tão cá fora como o meu segredo. Um novo espelho nascerá da fricção dos outros dois, como fogo vindo das pedras, e nele poderemos rever-nos, juntos, os que até hoje nem em separado se reviam.

Durante anos, uns, e décadas, outros, muitos de nós estiveram mergulhados em drogas, legais ou ilegais; durante esses anos, esses nós sentiram que o seu mundo estava doente, por não encaixar no mundo dos outros. Hoje, os mesmos nós podem saber que o mundo dos outros é, afinal, o mundo de uns quantos, poucos, muito poucos, que não querem encaixar no nosso mundo. Por isso é que o mundo, o mundo de todos, está em crise.

Chamem-me irresponsável, bipolar, o que quiserem. Sou isso tudo e mais alguma coisa. A minha forma de lidar com o problema é cada um de nós mudar o paradigma, virar o disco, venha quem vier: irmos para dentro cá fora, deixarmos de nos adiar em antidepressivos e sermos nós os antidepressivos do mundo. Cada um de nós.

Talvez assim se desatem os nós e o meu problema seja o teu e o dele e assim sucessivamente até, quem sabe, deixar de ser um problema.

(ilustração de Adão Cruz)


2 comentários:

  1. Marcos, como eu gosto das pessoas como tu que sabem pôr-se a nu, sem medo, perante os outros. Se todos fizessem o mesmo pelo menos alguma coisa (já não sou muito exigente)teria mudado. Um beijinho para ti e continua a escrever que eu gosto muito dos teus texos.

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  2. Bom texto, mas não seremos capazes de desatar os nós com os nós dos outros. temos que ter um nó comum, mesmo que não seja comum, faze-lo comum e, então, talves o problema se desate. Até lá, andaremos todos a desatar nós que não ajudam a desatar os dos outros , assim, batatas.

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