sábado, 6 de novembro de 2010

Recordando Alfredo Margarido (1)

Carlos Loures

Conheci o Alfredo Margarido em 1958. Fora-me apresentado no Café Restauração, na Rua 1º de Dezembro, não me lembro por quem, embora tenha a ideia de que foi o Renato Ribeiro que me introduziu nessa tertúlia de fim de tarde. Ao mesmo tempo conheci Edmundo Bettencourt que aparecia por ali, o pintor Cândido Costa Pinto e outros amigos.

Durante umas semanas mantivemos uma relação formal. O Margarido falava sobre tudo com uma grande segurança, era mais velho, muito mais sabedor, e eu não me atrevia a discordar, mesmo que às vezes estivesse tentado a fazê-lo ou a manifestar a minha concordância. Ele tinha o dom de formular com grande correcção ideias que andavam à solta pela minha cabeça. E muitas vezes, tentava reter na memória as formulações de Margarido. Naquele período, o Alfredo foi uma referência para mim.

Em 16 de Maio, uma sexta-feira, o general Humberto Delgado chegou a Lisboa, regressando de uma triunfal viagem ao Porto. Uma enorme multidão esperava-o em Santa Apolónia e logo aí forças da PSP e da GNR carregaram sobre os milhares de apoiantes. Junto da sede da candidatura, que funcionava na Avenida da Liberdade, no velho Teatro Avenida, cerca das 18 horas, juntou-se também uma multidão de muitos milhares de pessoas. Quando o cortejo, que vinha de Santa Apolónia, chegou perto do teatro – da Rua das Pretas e da Praça da Alegria saíram guardas da PSP e agentes da GNR a cavalo, num dispositivo destinado a impedir os apoiantes de se aproximarem do teatro. O primeiro troço do metropolitano estava a ser construído, havia pedras com abundância, e os «agentes da ordem» perderam o primeiro round – foram levados à frente do tsunami humano, alguns perderam os cassetetes para os manifestantes. Os que não fugiram a tempo e se distraíram a bater, foram mesmo espancados. Nessa tarde e até ao anoitecer andei lado a lado com o Ernesto Sampaio que se ria muito de todos aqueles episódios. À noite a luta recrudesceu, mas nós já estávamos no Gelo contando a nossa aventura.

No Domingo 18, á noite, realizou-se um comício do general no ginásio do liceu Camões. A sala encheu-se rapidamente e no exterior ficaram muitos milhares de pessoas. Andando por ali, fui dar ao San Remo. E lá estava a uma mesa o Alfredo Margarido. Trocámos umas impressões sobre o que se estava a passar. Falámos da posição do PCP (que começara por acusar o general de aventureirismo e de estar a soldo dos americanos, mas que face ao apoio popular, começava a mudar o discurso). Anoiteceu e no exterior a multidão que rondava toda a aquela zona não cessava de aumentar. Os gritos de «Delgado! Delgado!» ouviam-se como um trovoada de violência crescente. Patrulhas da PSP, a pé e em viaturas, desta vez armados de metralhadoras ligeiras e da GNR, com agentes a cavalo, percorriam incessantemente toda a área. Subitamente, ouvimos muito perto diversas rajadas de metralhadora. No San Remo entrou desordenadamente muita gente, deixando o café apinhado – as mesas foram arredadas e pusemo-nos de pé. No exterior, à mistura com os tiros, ouviam - se gritos. A polícia e a guarda tinham começado a carregar sobre os manifestantes. Soubemos depois que uma das rajadas destruíra a vidraça do café Monumental, no Saldanha. Houve feridos, mas julgo que ninguém morreu.

Dentro do San Remo, o Margarido assumiu o comando das operações. Para mim comentou «isto atingiu um clima de guerra civil» - Para o encarregado ou patrão deu uma ordem - «Apague as luzes! Já!» e para as dezenas de pessoas acumuladas dentro do café, com as mulheres a chorar e a gritar de medo, berrou uma ordem: «Calem-se, suas bestas!». O responsável pelo café cortou imediatamente a electricidade – as mulheres calaram-se com mais medo do Margarido do que da polícia. Eu fui ajudar um empregado a fechar as portas. Lá fora era um pandemónio – gente correndo com os agentes perseguindo-os e batendo-lhes com os bastões ou com as coronhas das espingardas. Uma manada desses desgraçados biltres passou pela montra e pela porta do café – um deles encostou a cara ao vidro e olhou para o interior, mas estava tudo tão imóvel e silencioso que, chamado pelos colegas, correu a juntar-se-lhes. Depois organizou a saída das pessoas em pequenos grupos. Todos lhe obedeceram.

O Margarido tinha essa qualidade de liderança inata, fosse na especulação filosófica ou política, na análise literária ou na acção, nunca duvidava de si mesmo. Ficámos amigos. Passei a frequentar a tertúlia do Restauração e pude ver que o Margarido pontificava naquele pequeno grupo de poetas e artistas plásticos – A Maria Manuela Margarido, mulher do Alfredo e grande poetisa são-tomense, o Edmundo Bettencourt, o poeta Manuel de Castro, o pintor Cândido Costa Pinto, o Renato Ribeiro – tudo gente de grande inteligência, mas com as hesitações e as dúvidas próprias de quem faz versos – com o último contradizendo o primeiro. O Alfredo expunha com o seu ar zangado, firme e assertivo. Mas sem ser o convencido que só se ouve a si mesmo – quando alguém falava ele ouvia com grande atenção e sem interromper.

Eu era um rapazito, meio estudante, vagamente trabalhador, o interior da minha cabeça assemelhava-se a uma zona de catástrofe, com Marx, Breton, Thomas Mann, Trotsky, Sartre e Camus, acotovelando-se, pontapeando-se – e metia-me às vezes em cavalarias altas, começando frases que não fazia ideia de como acabar – opinando sobre o Le mur, A Montanha Mágica ou sobre um dos manifestos o comunista ou o surrealista… Quando parava e via todos aqueles sábios à espera da conclusão, era por vezes tomado de pânico. O Margarido ajudava, apontando-me uma saída para o labirinto de palavras e conceitos em que eu me enredara.

Isto para dizer que o Alfredo Margarido era de uma extrema lealdade para com os amigos e implacável para os inimigos. E tinha inimigos de estimação. Não era mal dizente, era rigoroso. A lealdade aos amigos nunca o impediu de lhes apontar erros, cara a cara, se fosse preciso. Para ele não existiam aqueles elogios de circunstância - dizia sempre o que pensava. E também o ouvi elogiar inimigos - e quem o conheceu sabe como ele era parco em elogios.

(Continua)

7 comentários:

  1. Nesta altura andavamos nós com o general às costas em Castelo Branco e a levar com os cassetetes da ordem.A malta de batina a sair do hotel turismo com ele aos ombros.Bons tempos...

    ResponderEliminar
  2. Nesse dia em que Delgado esteve no Porto e embarcou para lisboa em S. Bento, frente à Estação tive de fugir com um colega meu para cima do altar da Igreja dos Congregados. Bom trabalho de boa História, Carlos, como sempre.

    ResponderEliminar
  3. Agora batem-nos com a crise e cada um se fica no seu quintal a receber avios para o estômago. Bons tempos esses outros...

    ResponderEliminar
  4. Se não fosse o "Calem-se, suas bestas" estava tudo bem.

    ResponderEliminar
  5. Não gosto de defender o que escrevo, mas neste caso trata-se de defender a memória de um amigo. Foi, de facto, assim que o mragarido disse - "Calem-se, suas bestas!=. Num ataque de histeria colectiva, como era o caso, a delicadeza não servia de nada. As pessoas, particularmente as mulheres (ou tenho que dizer «as senhoras?») estavam descontroladas. O berro do Margarido estabeleceu equilíbrio relativamente ao terror causado pelas «forças da ordem». No fim, ao sair, muitas pessoas, homens e mulheres, lhe agradeceram.

    ResponderEliminar
  6. Não tens nada que dizer as senhoras. Eu, primeiro que tudo, sou mulher. Essa coisa de ser uma senhora não me interessa nada. Mas estas coisas só compreende quem é mulher. Mesmo depois do 25 de Abril ouvi chamar a emoções femininas mais exaltadas histeria Por isso, acho que percebes o que eu estou a dizer. Eu, como mulher, posso-te garantir que já tive mais "tomates" que muitos homens. Por isso, não sou suspeita.

    ResponderEliminar
  7. Escreveste muito bem, Carlos. Fizeste um belo relato. Tenho muita pena de só recentemente ter conhecido o Alfredo Margarido, lá na Associação, já com ele tão doente.

    ResponderEliminar