Clara Castilho
Boris Cyrulnik volta a Lisboa, no dia 19 de Novembro, para participar no Colóquio da Revista Portuguesa de Psicanálise, a realizar no Instituto Franco-Português.
Médico, psiquiatra, neurologista e psicanalista, primeiro, etólogo de formação depois, Boris Cyrulnik abriu o campo da pesquisa, em França, à etologia humana, dentro de uma abordagem decididamente pluridisciplinar, revolucionando inúmeras ideias pré-estabelecidas sobre o ser humano. Os seus trabalhos debruçam-se, entre outras temáticas, sobre o conceito de resiliência, essa capacidade de superar os traumatismos psíquicos e as mais graves feridas emocionais: doença, luto, violação, tortura, deportação, guerra... Violências físicas e morais às quais milhões de crianças, mulheres e homens estão expostos no mundo de hoje. Apoiando-se em inúmeros exemplos observados localmente, no seu consultório de psicoterapeuta, assim como nas suas missões no exterior – da Bósnia ao Camboja, passando pelo Brasil e pela Rússia –, explica-nos como, mesmo nos casos mais terríveis, as pessoas podem recuperar e retomar o curso de suas vidas, graças a algumas faculdades adquiridas na infância e ao apoio recebido por pessoas empenhadas, depois da experiência traumatizante.
A 18 de Novembro de 2006 esteve presente em Lisboa, a convite do Centro Doutor João dos Santos – Casa da Praia, que comemorava os seus 30 anos de existência e trabalho junto das crianças e famílias, com uma sessão na Escola Superior de Educação em Lisboa. Dessa Conferência, podemos destacar:
“O que foi espantoso é que temos uma explicação para as atrofias cerebrais e que não são genéticas. São relacionais. Se não há um Outro para estimular a criança, as redes cerebrais não se vão desenvolver. Se não houver interacção, com o prazer e a dor que lhes estão associados, o prazer e a dor de voltar a estar com o Outro, o bebé não saberá colocar-se no lugar das interacções, “seduzir” a mãe, sorrir-lhe, chorar, fingir que está mal para lhe chamar a atenção. Se o bebé não puder aprender isto, aprende o medo de viver. A partir daí, encontros posteriores vão provocar medo, porque não são familiares. Porque não se adquiriu, neurologicamente, na memória, o sentimento de familiaridade, toda a informação é sentida como um “stress”.
Então, chegamos à definição possível de resiliência. A resiliência vem do mundo da Física. Em Psicologia e na Psicanálise, usam-se metáforas que vêm da Física. A “sublimação”, por exemplo. Quando se diz “este filme é sublime”, não se pensa na origem da palavra, que fala da transformação de um corpo sólido que passa directamente para um estado de vapor. Foi Freud que propôs esta metáfora e, hoje, quando se vai ao cinema e se diz que um filme é sublime, não se pensa na transformação química. O que não impede que venha dessa metáfora química. Outro exemplo: quando se diz que se está “deprimido”, não se pensa que se está abaixo de um certo nível de pressão física. E, no entanto, é uma metáfora que vem da Física e que quer dizer falta de pressão, estar-se abaixo de um certo nível de pressão, de uma certa força.
Então, a Psicologia e a Psicanálise estão cheias de metáforas. E as metáforas ajudam a pensar. Mas podem também ser uma armadilha para o pensamento…Ora, a resiliência é uma metáfora que vem da Física, o que quer dizer que um corpo físico recebe um golpe, não se parte e retoma um tipo de desenvolvimento, guardando a memória do golpe na estrutura física. Em analogia, o trauma que foi recebido, no caso de uma criança que fica traumatizada, fica esse traço gravado no seu cérebro. Se a deixarmos só, essa criança vai morrer fisicamente – as explicações da Biologia que hoje sabemos -, vai morrer psicologicamente, vai ficar débil, vai ter medo de tudo, vai ficar delinquente, porque não aprendeu os rituais da interacção.
Mas, se tomarmos consciência deste raciocínio, vamos envolvê-la, vamos organizar à sua volta estruturas de interacção que lhe permitirão retomar o seu desenvolvimento. Esta é uma definição possível de resiliência.
Quando trabalhei na Roménia e na Colômbia, observávamos que muitas crianças morriam. Ainda hoje, muitas crianças morrem, estando fisicamente sãs. Quando púnhamos à sua disposição comida e bebida, elas não comiam. Isto porque a comida e a bebida, se, por um lado, correspondem a necessidades biológicas, por outro, são já modos de interacção com um sentido. Quer dizer, que só se pode comer para alguém que se ama. Se não houver nenhum objecto de amor às volta das crianças, comer ou beber não tem sentido. Não comerão, não beberão. Vimos isto em crianças rodeadas de frutas, de bolos e que não comiam porque, para elas, isso não significava nada.
Se se verificar uma ferida, um trauma, dá-se uma agonia psíquica. O horror do que se viu, do que se sofreu, faz com que se fique morto psicologicamente, com que já não haja força para viver. De tal forma foi assustador o que se viveu, que a única forma de não sofrer é tornar-se pateta. Se, por infelicidade, a criança pensar, vai sofrer. Fica-se dilacerado, não se compreende o que aconteceu, é demasiado forte, chega a agonia psíquica. Ou então, uma parte da sua personalidade fica escarificada. Como uma escara, há uma parte morta da personalidade, mas à volta dessa parte, há brasas de resiliência. Mas será preciso que alguém sopre nessas brasas para voltar a surgir vida. E se ninguém soprar, fica-se morto. O que acontece, depois, é o retomar do desenvolvimento, mas com uma parte morta da personalidade, com um traço biológico na memória. É nessa altura que serão necessário tutores de resiliência para sobreinvestir coisas que uma criança que se desenvolveu bem não precisa.”
LIVROS EDITADOS EM PORTUGAL:
CYRULNIK, Boris - Memória de maçado e palavras de homem. Lisboa, Instituto Piaget, 1993.
CYRULNIK, Boris – Nutrir os afectos, Lisboa, Instituto Piaget, 1995.
CYRULNIK, Boris – Sob o signo do afecto, Lisboa, Lisboa, Instituto Piaget, 1995.
CYRULNIK, Boris – O nascimento do sentido, Lisboa, Instituto Piaget, 1995.
CYRULNIK, Boris – Do sexto sentido : o homem e o encantamento do mundo , Lisboa, Instituto Piaget, 1999.
CYRULNIK, Boris - Uma infelicidade maravilhosa. Porto, Ambar, 2001.
CYRULNIK, Boris – Resiliência, essa inaudita capacidade de reconstrução humana, Lisboa, Instituto Piaget, 2003.
CYRULNIK, Boris – O murmúrio dos fantasmas. Lisboa, Temas e Debates, 2003.
CYRULNIK, Boris – O homem , a ciência e a sociedade. Lisboa, Instituto Piaget, 2004.
CYRULNIK, Boris – Diálogo sobre a natureza humana , Lisboa , Instituto Piaget, 2004.
sábado, 6 de novembro de 2010
Boris Cyrulnik
Etiquetas:
boris cyrulnik,
clara castilho,
neurologia,
psicologia social,
psiquiatria
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Muito interessante Clara, e como é apaixonante o teu trabalho.
ResponderEliminarNada li dele, Clara, mas deve ser interessante. É uma matéria que está a jusante, como prática clínica, do interesse que me prende mais nos dias de hoje, como amador, as neurociências. Importante texto e valioso tema.
ResponderEliminarInteressante, Clara. gostei muito deste teu texto. Também não conheço nada. Costumava comprar livros do Instituto Piaget mas há muito tempo que não compro nada. Como é que estas teorias se ligam com as neurociências é um desafio de estudo estimulante.
ResponderEliminarEste texto da Clara é muito bom e elucidativo sobre uma matéria que, pelo menos a mim, me tem escapado. E já repararam que o Professor Iturra, na sua série sobre a sexualidade infantil, também faz repetidas citações do Boris Cyrulnik?
ResponderEliminarMuito interessante e muito pedagógico.
ResponderEliminar