domingo, 21 de novembro de 2010

Será que não bato bem?

Adão Cruz

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Não é que eu me considere tolo, embora os meus amigos digam que às vezes eu não bato bem. Eu penso, de facto, que há uma ou outra vez em que eu não aperto bem, ou melhor, aperto à minha maneira, que não é exactamente a maneira como os outros apertam.



Dá-se o caso que, vindo eu de Lisboa, de uma reunião médica, saí da auto-estrada para ir almoçar ao centro de Ílhavo. Estacionei o carro e procurei um restaurante, o qual, por acaso, estava ali mesmo à beira. Restaurante Villa Madrid.


Agradável, aconchegado e com um ambiente acolhedor. Televisão abafada, só com imagem, e no ar uma música suave e melodiosa que já não é habitual ouvir-se na maioria dos restaurantes: a Barcarola, dos contos de Hoffman, de Offenbach.


Sentei-me. A meio da refeição, uma Senhora idosa, dos seus oitenta anos, que me pereceu muito bonita, entrou na sala e sentou-se na mesa em frente à minha. Tinha um rosto vincado e sofrido, uma daquelas caras que parecem estar sempre prestes a chorar. Os nossos olhares cruzaram-se duas ou três vezes durante a minha permanência na mesa. O suficiente para eu achar, com efeito, que aquela Senhora deveria ter sido muito bonita.


Paguei a conta, levantei-me, e quando passava junto à Senhora coloquei-lhe suavemente a mão no ombro e disse: A Senhora desculpe o meu atrevimento, não leve a mal, mas eu gostava de lhe dizer que a Senhora deve ter sido muito bonita.


Ao contrário do que eu esperava, ela não se mostrou surpreendida. Calmamente poisou o talher, colocou serenamente a sua mão direita sobre a minha mão direita que eu havia apoiado na mesa e respondeu: Pois era. Era, de facto, muito bonita. Meu caro Senhor, muito obrigada pelas suas palavras que me souberam melhor do que a refeição. E, já agora, meu caro e desconhecido Senhor, deixe-me fitá-lo bem nos olhos, porque eu não quero esquecer a sua cara.


Fiquei meio paralisado. Com o melhor sorriso de que sou capaz e com uma inesperada sensação de estúpido, voltei a pedir desculpa e afastei-me.


Sentei-me no carro, com a porta aberta, e em voz alta atirei para o ar: Porra! Eles têm razão, eu não devo bater muito bem! Mas no fundo, bem no fundo senti-me feliz. Que belo momento, pensei! E quase senti uma lagrimeta no canto do olho. Não sei o que ganhei com o meu gesto. Não sei o que perdia se o não tivesse feito. Sei que há momentos tão subtis na vida real como os milhões de subtis mecanismos que geram o nosso mundo interior, e dos quais não nos damos conta. Há momentos cuja grandeza vai dos escaninhos da nossa alma à dimensão universal. Que se apresente aquele que seja capaz de os medir.


(Ilustração pormenor de Adão Cruz)

5 comentários:

  1. Seguiu o coração... e se não o tivesse seguido, teria ficado o resto da vida a pensar que o devia ter feito. E assim se proporcionam momentos felizes :-)
    Um beijinho docinho.

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  2. O nosso Luís Rocha tem para contar uma história semelhante. Mas a senhora a quem lançou o piropo não tinha papas na língua e o desfecho foi menos romântico - após uma festa na antiga FIL, salvo erro, aniversário da nossa editorial - o presidente do conselho de Administração, pediu ao Luís Rocha que de caminho para sua casa levasse a Beatriz Costa ao hotel Tivoli, onde ela residia desde que viera do Brasil. Eu escapei por morar na Parede. No trajecto, depois de um silêncio incómodo, para não estar calado, o Luís teve a tal saída: "A senhora está muito bem conservada". resposta imediata "- Ó seu ...., está a chamar-me velha?".

    Teria os seus 80 anos, mais ou menos. O Luís que corrija o que estiver errado.

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  3. É o calor humano, o Rocha também é muito assim

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  4. A senhora devia ter sido realmente muito bonita. Mas algum copito deve ter animado a Barcarola.

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  5. Carlos,
    Tens uma memória de elefante. Os pormenores têm o rigor que te caracteriza. Aquela resposta "sem papas na lingua" foi uma lição que me ficou para sempre

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