Carlos Loures
Sílvio Castro, meu prezadíssimo amigo, retribuo com os devidos juros os elogios que me fazes e que antecedem a tua patriótica indignação – considero-te um grande escritor, um probo intelectual e sei que és um excelso professor. Nada do que digo a seguir deve ser interpretado de outra forma que não seja a de prosseguir um diálogo entre amigos que divergem num pormenor, mas que sabem que estão de acordo em muitas coisas importantes. Conhecemo-nos há muitos anos e as nossas relações, as profissionais e as de amizade, sempre se pautaram por uma grande frontalidade. Não vamos abrir excepções.
Devias saber que nada me incomoda usar lugares-comuns sempre que acho que podem substituir formas mais elaboradas, mas menos claras. O lugar-comum é como a praça pública – aberto a todos. Tampouco me assustam adjectivos tais como «aberrante», «anacronístico» , como aqui dizemos, para mim vêm de carrinho. Usar anacronismos é precisamente um dos meus hábitos, num tempo em que a ditadura do “politicamente correcto” vai transformando em anacronismos valores, que constituíam suportes da vida em sociedade. Guio-me pelos juízos que das coisas faço. Como se costuma dizer, não sou de modas. Do que está na moda escolho o que me interessa e deito fora o que não me agrada. É pecha antiga que com a idade se vai agravando.
A moderna historiografia literária, tal como a antiga, como melhor do que eu sabes, não é uma ciência exacta, e o que agora é fixado como correcto está sujeito a no futuro ser considerado anacronismo, lugar-comum, quando não mesmo dislate. As Letras, as Humanidades são disciplinas que abordam o íntimo do ser humano e, se forem autênticas, não registam evoluções – Homero é tão pertinente quanto Saramago. A literatura ensina-nos que a natureza humana é igual á de há milhares de anos. Mudam as mentalidades? Mudam. Chamar-lhe evolução já não concordo, pois dá ideia de que seguem um padrão científico e que se vão aperfeiçoando. A natureza humana é imutável, pelo menos até que a engenharia genética a manipule e modifique. Correntes literárias, história da literatura, tudo o que a relaciona o homem como ser social – está sujeito à mudança e às tais modas a que sou indiferente. Estar ou não estar up-to-date seja no que for não me preocupa.
Entrando na questão que estamos a debater, não estou a depreciar os valores do patriotismo brasileiro, tão respeitáveis quanto os de qualquer outra nação. Não há nesta apreciação eurocentrismos ou europeísmos culturais. Aliás, com sete séculos de diferença, a independência de Portugal e a do Brasil têm similitudes – Afonso Henriques pertencia à nobreza leonesa e quis criar um reino independente. Pedro I, era o indigitado rei de Portugal, mas sonhou um Império vasto como um planeta. Patriotas, Afonso e Pedro? Acho que não – ambiciosos, diria antes. Eles e os que os acompanharam. E não considero a ambição um crime.. As épocas são diferentes e a ambição manifestou-se de forma diferente. A brutalidade dos barões medievais foi substituída pelo empolamento que o Romantismo induziu em toda a sociedade. E aí, meu caro Sílvio, és tu quem está a ser anacrónico e a deixar que o patriotismo interfira no raciocínio – os nobres que romperam com o reino de Leão ou Pedro, rompendo com Portugal, foram patriotas? Quanto a mim, não. Foram oportunistas. Ou, mitigando, podemos dizer que tiveram o sentido da oportunidade.
Os leoneses que criaram Portugal e os portugueses que criaram o Brasil não podiam ser patriotas de pátrias inexistentes. Nem eram oprimidos – queria bem saber Afonso dos que no seu condado viviam como animais ou estava preocupado Pedro com índios a ser exterminados ou com os negros que eram como mercadoria importados de África? Nem Afonso mudou a estrutura feudal do seu condado, nem Pedro deu liberdade aos escravos. Curioso que país «libertado do jugo colonial» quis manter os territórios que herdara do colonizador – deveria ter dado a liberdade ao Uruguai. Mas não. Prosseguiu a luta que os «portugueses opressores» tinham iniciado. Onde fica a coerência?
Quando digo que antes de haver estado brasileiro não existe literatura brasileira, quero dizer que antes da independência não existe Brasil. E aplico o mesmo critério a Portugal – não naturalizo as “Cantigas de Santa Maria”, embora faça parte da proto-história da nossa literatura (tal como da vossa). A língua portuguesa foi saindo do seu berço novilatino e iniciou uma deriva que passando por Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, António Vieira, chegaria ao belo idioma que hoje temos em nove nações (contando com a Galiza, a nação sem estado, a irmã com que há um milénio começámos a viagem). E tudo isto, de Afonso X a Rubem Fonseca, é nosso, é comum. Essa é a realidade.
Os patriotismos exacerbados são anacrónicos, são lugares-comuns e cheios de poeira que nos chegam, não da Idade Média ou da época dos Descobrimentos, mas sim desse mal - cheiroso século XIX, em que se forjaram impérios, romantismos anti-higiénicos que vieram a desembocar, já no desgraçado século XX em fascismos, nazismos, em estados - novos podres de velhos, em holocaustos… Deu-nos óperas bonitas, grandes romances, filósofos e poetas; o marxismo inventou-se e o capitalismo forjou-se ao ritmo do resfolegar da máquina a vapor. A ambição imperial tomou conta das cabeças. Napoleão não acabou em Waterloo, prolongou-se na sofreguidão de prussianos, russos, sérvios, austríacos, castelhanos que, sem espaço para criar o «seu» império, subjugaram vizinhos. O europeísmo cultural dominou as cabeças dos próceres da “libertações” americanas. A Europa de que diziam querer libertar-se, dominou-os, esteve em todos os seus actos. Na sua maioria, os «libertadores» eram europeus ou crioulos europeizados.
Queres anacronismos, meu caro Sílvio Castro? Tenta ler com olhos estrangeiros estes versos:
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heróico o brado retumbante,/E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos,/Brilhou no céu da Pátria nesse instante.
Se o penhor dessa igualdade/Conseguimos conquistar com braço forte,/Em teu seio, ó Liberdade,/Desafia o nosso peito a própria morte
É bonito, acredito que os corações brasileiros bombeiem lágrimas para os olhos patrióticos ao evocar o “Eu fico!”, tal como nós aqui lacrimejamos quando gritamos “Contra os canhões, marchar, marchar!” – mas é tudo romantismo e literatice novecentista – Nem no Brasil com a independência raiou o sol da liberdade, nem os portugueses marcharam contra os canhões britânicos que dos navios da sua armada se preparavam para bombardear Lisboa e Porto, se o seu humilhante ultimato não fosse aceite. No Brasil a escravatura continuou até à lei Áurea de 1888; aqui fizemos uma subscrição que deu para comprar uma pequena canhoneira e lá aceitámos o ultimato. Cada um foi à sua vida. As coisas são como são.
Segundo se diz nesse dia do “Eu fico”, o imperador estava com uma diarreia dos demónios, pouco adequada aos cânones românticos. Mas tal pormenor não ficaria bem nos versos empolados do Joaquim Osório Duque Estrada. Do nosso Afonso I não há notícia de distúrbios intestinais. Mas outros haveria.
A independência portuguesa foi uma questão familiar. Não existia por parte dos súbditos um impulso patriótico. Duvido que depois da independência alguma coisa de importante para eles tenha mudado. No Brasil, sete séculos após, as coisas não foram muito diferentes – escravos e índios terão visto as suas condições de vida melhorar?
Em Angola, em Moçambique, foi diferente. As independências foram conquistadas através de guerras contra a potência colonizadora, prolongando-se depois em terríveis guerras civis – antes das independências havia já uma literatura, escritores que, fazendo parte do património comum da lusofonia, não se inserem na literatura portuguesa. Em Cabo Verde, com circunstâncias históricas diferentes, há uma literatura que antecede a independência, sem que seja necessário anexar escritores portugueses que ali escreveram – Manuel Ferreira, com Hora di Bai e Morabeza, romances sobre Cabo Verde, foi um escritor português. Cabo Verde tem uma excelente literatura feita por cabo-verdianos – não necessita de empréstimos.
O que a historiografia literária afirma, interessa-me como informação, mas não como dogma. Guio-me pelos meus anacronismos e lugares-comuns e para mim Tomás António Gonzaga é um português, um portuense, subversivo na opinião do Santo Ofício, mas português – tão português como Bocage, seu companheiro árcade. Quanto ao Frei Caneca. está bem, meu caro Sílvio, fica lá com o Joaquim da Silva Rabelo, depois Frei Joaquim do Amor Divino. Acho que o Joaquim da Silva Rabelo era brasileiro, um dos primeiros. Esteve implicado na Revolução Pernambucana (1817) e na Confederação do Equador (1824) de cariz republicano contra o imperador. Aqui está um bom brasileiro, não um dos parasitas que acompanhavam Pedro I, sonhando o Brasil como um local de libertação e não como um pesadelo para escravos e indígenas.
A Carta de Pero Vaz de Caminha primeiro documento literário do Brasil? Seguindo esse critério, poderíamos dizer que a “Geografia” de Estrabão, um grego contemporâneo de Cristo ao serviço de Roma, ao descrever a Lusitânia e os lusitanos criou o primeiro monumento da literatura portuguesa .- pela sua dimensão geográfica e em particular pela antropológica pode ser considerada, pelo menos na versão latina, como um primeiro evento da nossa literatura, mais de um milénio antes de a Nação existir.
E ainda não foi desta vez que posso publicar o texto jubilatório sobre a magnífica literatura brasileira.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
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