quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Guilherme de Azevedo(1839-1882) - I

Carlos Loures

Na segunda metade do século XIX, Santarém, apesar da sua proximidade da capital, era uma cidade tipicamente provinciana. A visão de uma vila adormecida, bucólica, como a que Almeida Garrett nos descreveu em Viagens na Minha Terra, não sofrera alterações de monta nas poucas décadas que entretanto tinham decorrido. A cidade portuguesa que aparte Lisboa segundo o polígrafo Alberto de Almeida Pimentel, mereceu dos estudiosos de arte um mais elevado número de obras, a chamada capital do gótico. Bela, mas entediante. Bucolismo e tédio que os poderes vigentes procuram manter num sono vigiado por um «bom senso» de uma elite burguesa que tudo controla em termos económicos, políticos e sociais. Nada escapava à abrangente visão desse grupo dominante, muito menos as manifestações culturais.


Guilherme de Azevedo nasceu no seio desse escol, filho de um escrivão de Fazenda, o senhor Felício José Chaves, que desejava que o filho lhe seguisse as pisadas e herdasse o prestigioso, honrado cargo. Guilherme tinha outro projecto de vida. Quando termina o ensino liceal, pretendeu prosseguir os estudos na Universidade, em Coimbra. Desejava vir a ser escritor, jornalista... Mas o pai solicitou aos superiores que o cargo fosse herdado pelo filho. Guilherme vê-se, pois, escrivão de Fazenda, mergulhado num abominável pesadelo burocrático. Sobre a luta entre o que Guilherme quer ser e aquilo que seu pai o obrigou a ser, ouçamos Fialho de Almeida em Os Gatos (Lisboa, 1889-1894): «Chegado à adolescência, e vendo o pai que o seu varão dificilmente conseguiria trepar a bacharel, porque era cábula, e não havia meio de reagir sobre um organismo flébil e queixoso, resolveu-se fazê-lo interromper o curso dos liceus e integrá-lo na burguesia lugareja.» [...] «Como a família gozasse em Santarém duma pequena mediania, Guilherme com os proventos do emprego, aliás rendosos, ali viveu sem maiores faltas de conforto, e até desenvolvendo entre o dandismo da terra, umas galhardias de trajo, que miserabilizavam mais ainda, a sua pobre carcaça de aleijado. Na terra, era antipático, chamavam-lhe o diabo coxo.» [...] «Ele não podia consolar-se de ser defeituoso, e sem se queixar, evitava todos os ricochetes de palestra donde pudesse sair alusão à sua deplorabilíssima invalidez.»

Pertencem a este atormentado período da sua juventude, em que mitiga as agruras do quotidiano com ávidas, apressadas, leituras de Baudelaire, de Leconte de Lisle, de Victor Hugo, os primeiros versos do Almanaque de Lembranças (1864) e a recolha de poemas publicados em jornais e revistas e a que dá o título de Aparições (1867). Com o jornalista e escritor Tomás Lino de Assunção e com o numismata e compositor musical José Ferreira Braga, funda em 1871 O Alfageme, jornal onde colabora escrevendo crónicas satíricas e humorísticas. É esta inspirada veia satírica que o levará, anos depois, a ser convidado por Bordalo para dirigir literariamente o António Maria. Mas estamos agora a falar de O Alfageme, onde, entre outras coisas, tem a ousadia de fazer o elogio da Comuna de Paris, o governo insurreccional, constituído por socialistas e por operários, que, perante o quadro de miséria vivido pela população, entre Março e Maio de 1871, gere a capital francesa, numa atitude de repúdio pela humilhante capitulação do Estado após o cerco dos exércitos prussianos.

Esta corajosa posição custa-lhe a devolução da folha pelos seus escassos assinantes, a extinção do Alfageme que, nascido em 6 de Agosto, falece a 19 de Outubro, chegado o seu sexto número, vale-lhe a cruel alcunha de diabo coxo, aludindo ao suposto espírito satânico do poeta e, sobretudo, à sua deficiência física motivada pelo acidente na infância e pelo tumor que daí adveio. À pequena escala do burgo, o escândalo é clamoroso. Mesmo os poucos amigos que ainda tinha na cidade, se afastam. Santarém é demasiado pequena para conter o sol de revolta e de inconformismo que arde no peito de Guilherme. Porém, em contrapartida, são também estas posições ousadas que lhe valem a aceitação por parte dos escritores da chamada Geração de 70. Está com 35 anos. Entretanto, seu pai morre. Converte o parco património herdado em moeda, encerra a sua odiada carreira de escrivão e transfere a residência para Lisboa. Um novo ciclo da sua vida - o último e o mais importante - vai começar. «Estou deveras fatigado de Santarém; vou-me embora.», dissera Garrett. Guilherme subscreve.

Ainda neste agitado ano de 1871 publicara Radiações da Noite, em cujo prefácio manifesta já o desejo de dar um novo rumo à sua escrita, pois anuncia-se como «iconoclasta-inovador» [...] «afirmando-se com mais veemência e mais calor a palavra da nova fé social e democrática». Guilherme de Azevedo ganha fama, começa a ser falado para lá das muralhas de Santarém. Não será por mero acaso que o vemos, em Maio desse mesmo ano, entre intelectuais da dimensão de Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Augusto Soromenho, Adolfo Coelho, Jaime Batalha Reis e outros, no Grupo Cultural do Cenáculo, promotor das Conferências do Casino Lisbonense (que se projectava realizar de 22 de Maio a 19 de Junho de 1871), destinadas a, com realismo, «tratar as grandes questões contemporâneas, religiosas, políticas, sociais, literárias e científicas...» Como se vê, todo um programa de regeneração da anquilosada sociedade portuguesa. O Governo, porém, cancela a realização das Conferências. Afinal, nem só em Santarém as autoridades zelam por que o sono não seja interrompido.

(Continua)

(Adaptação da biografia publicada pelo autor em "Vidas Lusófonas")

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