quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

VerbArte - O lúcido maluco





Adão Cruz

Hoje de manhã, enquanto passeava a minha netinha, um homenzinho gritava a plenos pulmões, fazendo-se ouvir em toda a rua: o cavaco e o primeiro-ministro arruinaram este país e o povo continua burro. Na verdade, ele não dizia arruinaram, dizia foderam, eu é que procurei fugir à asneirola.

A raiva com que ele clamava, alto e bom som, não passava despercebida a alguns transeuntes que assentiam levemente com a cabeça, se calhar também com a mesma vontade de gritar uma tão grande verdade, não fora o facto de serem tidos como malucos.

Eu era um deles.

De facto, depois do que fizeram deste pobre país, depois de se terem rodeado de uma legião de ladrões e corruptos, e terem estourado com tudo, depois de permitirem e abrirem caminho ao assalto e ao roubo da nação, deixando-a nas lonas materiais, psicológicas e sociais, depois de devorarem o país, têm a lata preparar eleições para exumar o cadáver, como abutres, a ver se ainda há restos para comer.

                                       E o povo sereno!

Como me apetecia ir para a rua, passar por maluco durante meia hora, e berrar bem alto: o cavaco e o primeiro-ministro deram cabo deste país.

Apenas por uma questão de linguagem mais limpa não diria foderam.









(Iludtrações de Manel Cruz)

2 comentários:

  1. ehheh como dizia um desses homens ainda jovem, no outro dia na baixa de Lisboa "até a água sabe mal..."

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  2. Adão,
    Ainda queria escrever uma coisita sobre os "tabuismos" que o Carlos Loures abordou num artigo recente, se vencer a preguiça com que ando para abordar coisas mais sérias.
    Mas, em tentativa de síntese: a linguagem não é limpa ou suja, conforme as palavras que se usam. Aquilo a que chamas "asneirola" não é mais que uma das muitas palavras que fizeram o seu caminho, no largo rio da língua, pela correnteza mais popular e socialmente "inferior"; e não tinham outro caminho, essas pobres palavras que se referem a temas, como o sexo, de que as "pessoas de bem" não deviam falar (a não ser o bravo macho burguês ou aristocrata, nos bordéis que tinha a obrigação de frequentar, falando então, entre "iguais" e com as putas que os "serviam", nesse linguajar popular - que outro, aliás, não conheceriam, pois era coisa de especialistas - médicos, especialmente)... Em casa não se falava dessas porcarias, fornicava-se (como dizia o sr. padre) a legítima, com moderação e virtude, sem fantasias pecaminosas que poderiam revelar à infeliz outros mundos - mais risonhos e prazerosos -, com o abençoado intuito de procriar herdeiros de fazendas e títulos. Não se falava "como um carroceiro", tal como os meninos não rapavam o prato... para mostrar que não eram uns esfomeados como a prole da populaça.
    Pois é, as palavras também reflectem as divisões de classes. Mas, como vão ganhando conotações que lhes enriquecem significados e definem usos, só por razões egoístas é que não quero que vulgarizem os "tabuísmos" - por insuficiência de vocabulário -, roubando-lhes expressividades provectas, cujo uso, rarefeito mas afinado e em ocasião que o propicie, é utilíssimo.
    Ora, digamos, a terminar, que a palavra usada pelo homenzinho é perfeitamente adequada à ocasião, ao tema e às personagens referidas.
    Paulo Rato

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