(Continuação)
João dos Santos(1913-1987) **
(Enviado por Clara Castilho)
J.S.M - Mas os adultos sentem uma coisa muito semelhante. Também para eles o ritual da comida e dos presentes tem em geral uma enorme importância.
J.S. - Pois, nesse aspecto da intimidade, o que caracteriza o adulto, é a criança que existe dentro dele, exceptuando certas pessoas que se rigidificaram muito, que se estupidificaram às vezes também, ou que se tornaram caracteriais. O carácter é um conjunto de traços ou de comportamentos fixos que revela uma pragmática a que a pessoa se adaptou para depois conseguir, através disso, eliminar a sua ansie¬dade. Há duas formas principais de ser, uma é a pessoa ansiosa, que é a mais pró¬xima daquilo a que se chama neurose, a pessoa que sente ansiedade em face das coisas, e há o arranjo que as pessoas dão à sua ansiedade transformando-a em com¬portamento caracterial. Por exemplo, um tipo vai comprar uma agenda para escrever tudo o que tem a fazer em cada dia. Isso pode ser uma forma caracterial normal de evitar a angústia das surpresas.
J.S.M. - E donde é que vem a euforia do Natal, vivida tão intensamente tanto por crianças como por adultos? Há uma espécie de alucinação colectiva que dura uns dias em que parece que as pessoas andam todas a contar a si próprias uma história fabulosa em que não podem acreditar...
J.S. - ……que é sempre a história da desculpabilização. A festa do Natal é descul¬pabilizante por natureza, por aquilo que nós já falámos. Somos absolvidos e toda a gente é tolerante para com os adultos. O Menino Jesus é mais que tolerante, é passivo, é generoso, e as crianças identificam-se com Ele, ou se não se identificam, fazem um esforço nesse sentido, o que já é também desculpabilizante.
J.S.M. - É estranho que essa lenda seja única. Não conheço nenhuma parecida.
J.S. - Realmente não me recordo de ter lido ou ouvido qualquer outra história com tal relevo, mas de facto é uma história que não me surpreende. Reflectindo sobre ela, parece-me que era inevitável que fosse inventada.
J.S.M. - O êxito extraordinário da lenda do Natal virá então de podermos, todos, alimentar a ilusão inconsciente, ao menos por alguns dias, de que o nosso pai e a nossa mãe não estiveram juntos, que não se passou nada entre eles, que afinal não é preciso evocar nenhuma daquelas emoções terríveis que cada criança viveu acerca da vida íntima dos adultos; o sabermos que na história do Natal, em que cada um de nós conta à sua maneira a sua própria história familiar, em que cada um de nós projecta a história idealizada do seu próprio romance familiar, a história do seu nas¬cimento, a história das suas relações com a sua mãe e com o seu pai, a história das relações que os seus pais têm entre eles, e a história, afinal, da sua própria inocência, da sua própria ignorância inocente - o sabermos que nessa história pessoal e íntima que cada um conta à sua maneira não há, afinal, segredo nenhum, não existe mal, nem pecado, nem a ameaça da condenação? Será por isso que a história do Natal tem o sucesso que tem? Assim não temos que enfrentar a culpabilidade inerente a um conhecimento pecaminoso porque não há, afinal, nada de terrível para conhecer. Assim cada pessoa revive nessa lenda desejos secretos de uma enorme importância, revive, digamos, a história da sua própria inocência perdida, agora magicamente recu¬perada?
J.S. - Exactamente.
Pois a educação, como os mitos, como as religiões, como a realidade que nós sabe¬mos existir fora de nós, são suportes para as coisas boas e más que inventamos dentro de nós, sobretudo na infância. Portanto a história do Menino Jesus enquadra-se per¬feitamente naquela parte da criança que quer promover a idealização dos pais e pro¬clamar a inocência do menino, que por ser menino e ser deus não o culpa de nada.
Cada pessoa serve-se do que está à sua volta como suporte da realidade que lhe convém mais, e é por isso que a gente fala uns com os outros, é por isso que há diálogo, porque se as coisas fossem como vêm nos dicionários, como eu dizia no outro dia, cada pessoa andava com um dicionário debaixo do braço e não precisava de dia¬logar.
J.S.M. - É engraçado... É como se toda a gente, numa dada altura da vida, se contasse a si própria, em segredo, aquela mesma história, porque toda a gente sonha, sem o saber, com a possibilidade daquilo ser verdade...
J.S. - Mesmo que não se fale nisso...
J.S.M. - Exactamente...
J.S. ...está implícito.
J.S.M. - E toda a gente inventa para si própria, secretamente, uma história assim, sem nunca ter, se calhar, a mínima consciência disso, até que um dia encontra essa história fora de si, dá-lhe uma objectividade aceitável e mete-se a si próprio dentro da história com a maior candura. E como se tivesse ido ao cinema ou se estivesse a ler um romance entusiasmante e se identificasse com o herói da história. Realmente o Menino Jesus é uma espécie de herói duma história que toda a gente se conta, em segredo, sem o saber.
* SANTOS, J., Monteiro, J.S. (1988 b)) - “Se não sabe, porque é que pergunta?”. Lisboa: Assírio e Alvim.
**Psicamalista e Pedopsiquiatra, reformulador dos serviços de saúde mental infantil na década de 60 (ver http://www.casadapraia.org.pt/)
Desenho de uma criança do centro Doutor João dos Santos_______________
Sem comentários:
Enviar um comentário