quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Para uma redefinição da União Económica e Monetária Europeia: da crítica dos seus fundamentos à crítica da crise actual - 4

Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes *


FALSA EVIDÊNCIA N.º 8: A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU

A construção europeia apresenta-se como uma experiência ambígua. Duas visões da Europa coexistem, sem se atreverem a confrontar-se abertamente. Para os social-democratas a Europa deveria ter como objectivo a promoção do modelo social europeu, fruto do compromisso social do pós-Segunda Guerra Mundial, com a sua protecção social, os seus serviços públicos e as suas políticas industriais. Deveria ser um baluarte contra a globalização liberal, uma forma de proteger, manter e fazer avançar este modelo. A Europa deveria defender uma visão própria da organização da economia mundial, a globalização regulada por instituições de governação mundial. Deveria permitir aos países-membros manterem um nível elevado de despesas públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de as financiar através da harmonização fiscal sobre as pessoas, sobre as empresas e sobre os rendimentos de capital.

Todavia, a Europa não quis assumir a sua especificidade. A visão que prevalece actualmente em Bruxelas e na maioria dos governos nacionais é, em vez disso, a de uma Europa liberal, cujo objectivo é o de adaptar as empresas europeias às exigências da globalização: a construção europeia é uma oportunidade para pôr em causa o modelo social europeu e para desregulamentar a economia. A prevalência do direito europeu da concorrência sobre as regulamentações nacionais e sobre os direitos sociais no Mercado Único permite introduzir maior concorrência nos mercados de produtos e serviços, diminuir a importância dos serviços públicos e organizar a concorrência entre os trabalhadores europeus. A concorrência fiscal e social permitiu reduzir os impostos, nomeadamente sobre os rendimentos de capitais e empresas (as “bases móveis”) e permitiu fazer pressão sobre as despesas sociais. Os tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre circulação das pessoas, bens, serviços e capitais. Mas, longe de se limitar ao mercado interno, a liberdade de circulação de capitais tem sido dada aos investidores do mundo inteiro, submetendo assim o tecido produtivo aos constrangimentos da valorização do capital internacional. A construção europeia apresenta-se como uma forma de impor reformas neoliberais aos seus povos.
A organização da política macroeconómica (independência do Banco Central Europeu face ao poder político, o Pacto de Estabilidade) é marcada pela desconfiança para com os governos democraticamente eleitos. Trata-se de privar os países de qualquer autonomia, tanto em termos de política monetária, como em termos de política orçamental. O equilíbrio orçamental deve ser alcançado, estando banidas quaisquer políticas discricionárias de relançamento da economia, para deixar funcionar unicamente os “estabilizadores automáticos”. Nenhuma política económica conjuntural comum é posta em prática ao nível do espaço europeu, nenhum objectivo comum é definido em termos de crescimento e de emprego. As diferenças de situação entre os países não são tidas em conta, porque o Pacto não tem em conta nem as taxas de inflação nem os défices externos nacionais; os objectivos das finanças públicas não têm em conta as situações económicas nacionais.
As instâncias europeias têm tentado impulsionar reformas estruturais (pelas Grandes Orientações de Políticas Económicas, pelo Método Aberto de Coordenação, ou pela Agenda de Lisboa) com um sucesso muito desigual. O seu modo de elaboração não foi democrático nem mobilizador, a sua orientação liberal não correspondia necessariamente às políticas decididas a nível nacional, dada a relação de forças em cada país. Essa orientação não teve desde logo um sucesso brilhante que a teria legitimado. O movimento de liberalização económica tem sido posto em causa (o falhanço da directiva Bolkestein); alguns países têm tentado nacionalizar a sua política industrial, enquanto a maioria está contra a europeização das suas políticas fiscais e sociais. A Europa social tem-se mantido uma palavra vazia, só a Europa da concorrência e da finança é que se tem realmente afirmado.
Para que a Europa possa promover verdadeiramente um modelo social europeu, colocamos a debate duas medidas:

Medida n.º 16: Pôr em causa a livre circulação de capitais e de mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, através da negociação de acordos bilaterais ou multilaterais, se necessário.

Medida n.º 17: Em vez da política de concorrência, fazer da “harmonização no progresso” o princípio norteador da construção europeia. Estabelecer objectivos comuns obrigatórios tanto em matéria de progresso social como em matéria de macroeconomia (as GOPS, grandes orientações de política social).

FALSA EVIDÊNCIA N.º 9: O EURO É UM ESCUDO CONTRA A CRISE

O euro deveria ser um factor de protecção contra a crise financeira global. No fim de contas, a eliminação de toda e qualquer incerteza sobre as taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um dos principais factores de instabilidade. No entanto, não foi nada assim: a Europa foi mais duramente e mais prolongadamente afectada pela crise do que o resto do mundo. Isto deve-se às modalidades específicas da construção da união monetária.
Depois de 1999, a zona do euro registou um crescimento relativamente medíocre e um aprofundamento do processo de divergência entre os Estados-Membros, em termos de crescimento, inflação, desemprego e dos desequilíbrios externos. O quadro da política económica da zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas similares para todos os países-membros, mesmo que estes estejam em situações muito diferenciadas, alargou as disparidades de crescimento entre os Estados-Membros. Na maioria dos países, especialmente nos maiores, a introdução do euro não provocou a prometida aceleração do crescimento. Para outros, tem havido crescimento, mas ao preço de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, permitiu fazer incidir sobre o trabalho todo o peso dos ajustamentos empreendidos. Promoveu-se a flexibilidade e a austeridade salarial, reduziu-se a parcela dos salários no rendimento total, aumentaram as desigualdades.
Esta corrida à minimização da dimensão social foi ganha pela Alemanha, que foi capaz de obter grandes excedentes comerciais, à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma redução do custo do trabalho e dos benefícios sociais, o que lhe conferiu uma vantagem comercial relativamente aos seus vizinhos, que não puderam tratar tão duramente os seus trabalhadores. Os excedentes comerciais alemães pesam [negativamente] sobre o crescimento dos outros países. Os défices orçamentais e comerciais de uns não são mais do que a contrapartida dos excedentes dos outros... Os Estados-Membros não foram capazes de definir uma estratégia coordenada.
A zona euro deveria ter sido menos atingida do que os Estados Unidos ou o Reino Unido por esta crise financeira. As famílias estão claramente muito menos envolvidas nos mercados financeiros e estes são menos sofisticados. As finanças públicas estavam em melhor situação, o défice do conjunto de todos os países da zona euro era de 0,6% do PIB, em 2007, contra quase 3% nos Estados Unidos, no Reino Unido ou no Japão. Mas a zona euro sofria um agravamento dos seus desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, Países Escandinavos) travavam os salários e a procura interna e acumulavam excedentes externos, enquanto os países do Sul (Espanha, Grécia, Irlanda) registavam um forte crescimento, impulsionado por taxas de juro baixas em relação à taxa de crescimento, ao mesmo tempo que acumulavam défices externos.
Embora a crise financeira tenha tido origem nos Estados Unidos, estes tentaram fazer uma verdadeira política de relançamento orçamental e monetário e, ao mesmo tempo, iniciaram um movimento de reforço da regulação financeira. A Europa, pelo contrário, não foi capaz de empreender uma política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental foi de cerca de 1,6 pontos percentuais do PIB na zona euro, 3,2 pontos no Reino Unido e 4,2 pontos nos Estados Unidos. A queda da produção devido à crise foi nitidamente mais forte na zona euro do que nos Estados Unidos. O agravamento dos défices na zona euro foi sobretudo inelutável e não o resultado de uma política activa.
Entretanto, a Comissão continuou a accionar procedimentos por défice excessivo contra os Estados-Membros, de tal modo que, em meados de 2010, praticamente todos os Estados da zona euro estavam nessa situação. Exigiu aos Estados-Membros que se empenhassem em voltar, antes de 2013 ou de 2014, a valores abaixo dos 3%, independentemente da evolução económica. As autoridades europeias continuaram a clamar por políticas salariais restritivas e que se pusessem em causa os sistemas públicos de pensões e de saúde, com o risco, evidentemente óbvio, de afundar o continente numa profunda depressão e de aumentar as tensões entre os países. Esta ausência de coordenação e, fundamentalmente, a ausência de um verdadeiro orçamento da União Europeia que possibilitasse uma solidariedade efectiva entre os Estados-Membros incentivaram os operadores financeiros a afastar-se do euro e mesmo a especular abertamente contra ele.
Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos europeus, em caso de crise, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 18: Assegurar uma efectiva coordenação de políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus.

Medida n.º 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na Europa, através de um Banco de Regularização de Pagamentos (organizando os empréstimos entre os diversos países europeus).

Medida n.º 20: Se a crise do euro levar ao seu estilhaçamento, e contando com a possível institucionalização de um orçamento europeu (ver abaixo), criar um sistema monetário intra-europeu (moeda comum do tipo “bancor”), que organize a reabsorção dos desequilíbrios das balanças comerciais no interior da Europa.

FALSA EVIDÊNCIA N.º 10: A CRISE GREGA POSSIBILITOU FINALMENTE AVANÇAR PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E PARA UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA

A partir de meados de 2009, os mercados financeiros começaram a especular sobre a dívida dos países europeus. Globalmente, a forte subida das dívidas e dos défices públicos à escala mundial não resultou (ainda) em aumentos das taxas de longo prazo: os operadores financeiros acreditam que os bancos centrais vão manter durante muito tempo as taxas monetárias reais em valores muito próximos de zero, e que não há, nem o perigo de inflação, nem o risco de um grande país entrar em situação de incumprimento das suas dívidas. Mas os especuladores viram bem as falhas na organização da zona euro. Enquanto os governos de outros países desenvolvidos podem sempre ser financiados pelo respectivo Banco Central, os países da zona euro renunciaram a esta opção e estão totalmente dependentes dos mercados para financiar os seus défices. Em resultado, a especulação pôde desencadear-se sobre os países mais frágeis da zona: Grécia, Espanha, Irlanda.
As autoridades europeias e os governos nacionais têm sido lentos na resposta, não querendo dar a impressão de que os países-membros tinham direito a apoio ilimitado dos seus parceiros, e querendo castigar a Grécia, culpada de ter escondido — com a ajuda do banco Goldman Sachs — a dimensão dos seus défices. No entanto, em Maio de 2010, o BCE e os países-membros tiveram de criar de emergência um Fundo de Estabilização, para sinalizar aos mercados que dariam aquele apoio ilimitado aos países ameaçados. Em troca, estes tiveram que anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que os vai condenar a um abrandamento da actividade económica a curto prazo e a um longo período de recessão. Sob pressão do FMI e da Comissão Europeia, a Grécia deve privatizar serviços públicos e a Espanha deve flexibilizar o mercado de trabalho. Mesmo a França e a Alemanha, que não são objecto de especulação, anunciaram medidas restritivas.
No entanto, a procura não é, de forma alguma, globalmente excessiva na Europa. A situação orçamental é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, possibilitando margem de manobra orçamental. É necessário reabsorver os desequilíbrios de forma coordenada: os países do norte e do centro da Europa, com excedentes comerciais, devem empreender políticas expansionistas — salários mais elevados, mais despesas sociais... — para compensar as políticas restritivas dos países do Sul. A política orçamental não deve ser globalmente restritiva na zona euro enquanto a economia europeia não se aproximar, a um ritmo satisfatório, da situação de pleno emprego.
Mas os defensores da política orçamental automática e restritiva na Europa estão hoje, infelizmente, com mais força. A crise grega permite fazer esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que concordaram em apoiar financeiramente os países do Sul querem impor, em troca, um endurecimento do Pacto de Estabilidade. A Comissão Europeia e a Alemanha querem impor a todos os países-membros que inscrevam nas respectivas Constituições o objectivo de equilíbrio orçamental e que as respectivas políticas orçamentais sejam controladas por comissões de peritos independentes. A Comissão Europeia quer impor aos países uma longa cura de austeridade, para que a dívida pública volte a ser inferior a 60% do PIB. Se há um passo rumo a um governo económico europeu, é para um governo que, em vez de afrouxar o grilhão da finança, vai impor austeridade e um aprofundamento das “reformas” estruturais, em detrimento da solidariedade social em cada país e entre os diversos países.
A crise proporciona às elites financeiras e aos tecnocratas europeus a tentação para porem em prática a “estratégia de choque”, aproveitando a crise para radicalizar ainda mais a agenda neoliberal. Mas essa política tem poucas possibilidades de sucesso:

— A redução da despesa pública vai comprometer os esforços necessários a nível europeu para apoiar as despesas orientadas para o futuro (investigação, educação, política familiar), para ajudar a indústria europeia a manter e a investir em áreas de futuro (economia verde).

— A crise vai permitir a imposição de cortes profundos nas despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos defensores do neoliberalismo, com o risco de comprometer a coesão social, de reduzir a procura efectiva e de pressionar as pessoas a pouparem, para garantir as suas pensões de reforma e os cuidados de saúde, e a colocarem as suas poupanças junto das instituições financeiras, os responsáveis pela crise.

— Os governos e as instâncias europeias recusam-se a organizar a harmonização fiscal, que permitiria o necessário aumento dos impostos sobre o sector financeiro, sobre os grandes valores patrimoniais e sobre os rendimentos elevados.

— Os países europeus instauram, de forma duradoura, políticas orçamentais restritivas, que pesam [negativamente] sobre o crescimento. As receitas fiscais vão cair. Deste modo, os saldos das contas públicas nunca poderão melhorar, os rácios da dívida pública irão degradar-se e os mercados não serão acalmados.

— Os países europeus, devido à diversidade das suas culturas políticas e sociais, não foram todos capazes de se sujeitar à disciplina de ferro imposta pelo Tratado de Maastricht, e não serão todos capazes de se sujeitar ao seu reforço actualmente instituído. O risco de desencadear uma dinâmica generalizada de os países se fecharem sobre si próprios é real.

Para avançar para um verdadeiro governo económico e uma verdadeira solidariedade europeia, colocamos duas medidas em debate:

Medida n.º 21: Instituir uma fiscalidade europeia (imposto sobre o carbono, imposto sobre os lucros...) e um verdadeiro orçamento europeu, para apoiar a convergência das economias e para caminhar no sentido da igualdade de condições de acesso aos serviços públicos e sociais nos diversos Estados-Membros, com base nas melhores práticas.

Medida n.º 22: Lançar um vasto plano a nível europeu, financiado por subscrição junto dos particulares, com taxa de juro baixa mas garantida e/ou por criação monetária pelo BCE, para empreender a reconversão ecológica da economia europeia.

* Docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

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