quarta-feira, 30 de junho de 2010

Carta a um escritor

António Gomes Marques

Há pessoas que escrevem livros, de imediato publicados, que não necessitam de publicidade e, logo à partida, têm a garantia de venda de milhares de exemplares. Há escritores, uns bons e outros excelentes, que se vêem e desejam para encontrar editor e cujas obras, quando editadas, se vão arrastando ao longo do tempo numa venda lenta e que, muito de vez em quando, lá esgotam a edição. O fenómeno não é apenas português. Claro que também acontece que estes escritores, se têm a sorte de as livrarias lhes darem visibilidade, conseguem passar a ser conhecidos e, naturalmente, a ser procurados; no entanto, com raríssimas excepções, o número de exemplares de cada edição dificilmente ultrapassa os 3000 exemplares. Mas são estes escritores que merecem que deles falemos, que gritemos ao Mundo: «Olhem para aquele livro, leiam-no, discutam-no, pensam-no!»

É dum desses escritores que vos quero falar. Não é conhecido do público, não atingiu ainda a excelência e poderá nunca a atingir se não o lermos e, assim, o levarmos a desistir.

Foi no dia 26 de Novembro de 2007 que o António Norberto Cunha me procurou trazendo um livro debaixo do braço, o que nada teria de extraordinário não fosse ele o autor. Tratava-se de «O Triângulo de Dezembro e outras ficções», livro de contos, livro que estendeu para mim, dizendo: «É para ti!» Com alguma emoção, abri de imediato para lhe pedir a dedicatória, da qual o Norberto não se tinha esquecido e que não resisto a transcrever:

A

António Gomes Marques

velho companheiro de per-

cursos e ideais e grande

amigo, com um frater-

nal abraço.

26/11/07

Norberto Cunha

Dois ou três dias depois iniciei a sua leitura, finda a qual me coloquei frente ao computador, não resistindo a escrever o texto que abaixo vos deixo (e que continuava inédito), texto esse que vos dirá a razão por que não podia deixar de o produzir, e a que chamei:

CARTA A UM ESCRITOR

Meu Caro Norberto


Já são passados mais de 2 anos sobre a resposta que me deste à inevitável pergunta que se faz a um amigo que não vemos há algum tempo: «Tenho desfrutado da companhia dos netos e do prazer da escrita». Perguntei-te de seguida o que tens escrito, pensando eu que me irias falar da «nossa» Filosofia que tanto tem ocupado as nossas vidas e tu, confesso, voltaste a surpreender-me: «Tenho escrito uns contos, pensando mesmo em publicar um livro».

Um livro, óptimo, e logo de contos, que eu sempre considerei o mais difícil na ficção. E foi este o tema que se seguiu na nossa conversa. Perguntaste-me então se eu estaria na disposição de ler alguns e, depois, dar a minha opinião. Claro que a resposta teria de ser sim.


Fui um leitor atento, mas demasiado exigente. Acredita que foi por amizade, dado temer que não passasses de mais um ficcionista no meio de muitos, o que para um amigo meu seria pouco. Tinhas escolhido a via mais difícil para fazer literatura – escrever contos. Mas, na verdade, pode ser-se muito bom contista sem atingir a mestria de um Anton Tchekhov, o melhor de todos na minha modesta opinião.


Vi, de imediato, que tinhas cuidado com a narração e que sabes perfeitamente que a literatura tem de ser construtiva e não demonstrativa, mas deixei para o futuro uma apreciação mais definitiva sobre a tua qualidade de contista. Foi, mais ou menos, o que te disse depois de lidos os 3 contos que me enviaste, havendo um deles que não me agradou, embora te tivesse dito que deverias pegar nas suas personagens, construir-lhes uma vida, sem preocupações do número de páginas para, assim, ganhares experiência para vires a ser o ficcionista que estavas a pretender ser.

Mais tarde, disseste-me que o livro estava pronto e que gostarias que eu fizesse, naturalmente com outros, a sua apresentação pública. Convite honroso que não pude aceitar por, nas datas prováveis, não estar no país. Foi pena não ter podido testemunhar este momento importante da tua vida, igualmente importante para os amigos!

Entretanto, chegou-me o livro, «O Triângulo de Dezembro e outras ficções», generosamente oferecido por ti, cuja leitura iniciei cheio de curiosidade uns dias mais tarde, logo que terminadas outras leituras (não consigo ler um só livro de cada vez).

Nos contos gosto, naturalmente, de histórias curtas que sejam capazes de sintetizar um romance em meia dúzia de páginas, ou menos, que me falem de pessoas vivas, verosímeis, que levam a nossa imaginação a procurar a solução do mistério que o autor tão bem nos sabe apresentar. Por isso, gosto dos contos de Manuel da Fonseca, do Carver, da Flannnery O’Connor, do Juan Rulfo, do Italo Calvino, como também de Ilya Ehrenburg (esqueçamos um pouco o seu estalinismo), do Guy de Maupassant, da «Servidão e Grandeza dos Franceses », de Aragon, do Miguel Torga e de muitos, muitos outros, sem esquecer o maior – Anton Tchekhov.

E gosto dos teus contos, perfeitamente enquadrados quase todos eles na minha concepção do que é um conto. Apareceram-me como narrados de dentro do universo que procuras retratar, sentindo-se muitas vezes a tua adesão ao mundo que mostras, numa linguagem simples para o leitor, bem mais difícil para o autor. Mostras dominar já bastante bem, para além da linguagem, a técnica do conto, a criação do mistério a partir de uma realidade que o leitor pode (deve) conhecer.

Por fim, não posso deixar de referir que continuaste a surpreender-me. Falo do conto «A Bandeira Moçárabe», que tomo como homenagem à terra que te viu nascer, Faro, conto esse prenhe de erudição.

Poderias ter escolhido a época pré-histórica ou a época romana, bem assinaladas por traços bem materiais; optaste pela época da ocupação islâmica, iniciada no séc. VIII, mostrando um conhecimento profundo do viver quotidiano da época que retratas e que resulta numa lição erudita que me encantou. Bem hajas!

E pronto, meu caro António Norberto, esta carta já vai longa e é tempo de a terminar.

Abraça-te com a amizade de sempre o

António

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