terça-feira, 22 de junho de 2010
Fernando Pessoa, Paulo Autran e Álvaro de Campos descem ao Terreiro da Lusofonia
Ouvimos, através da dicção perfeita de Paulo Autran, um poema de Álvaro de Campos - "Poema em linha recta". Quem foi Paulo Autran? Um dos maiores actores brasileiros de sempre, pois as suas magníficas interpretações eram sustentadas por uma inteligência elevada e por uma cultura invulgar. Paulo Paquet Autran, nasceu no Rio de Janeiro em 7 de Setembro de 1922 e faleceu em São Paulo a 12 de Outubro de 2007) Teve inesquecíveis interpretações no teatro, no cinema e na televisão. A sua voz trouxe-nos directamente, em linha recta, este clarão da galáxia que se chama Fernando Pessoa.
De Fernando Pessoa não é necessário dizer nada
Vamos então ler o Poema em linha recta. E depois de o lermos, não fazia mal ouvir de novo o Paulo Autran. Lusofonia em estado puro e em movimento.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
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