segunda-feira, 21 de junho de 2010

O casaco beje

Ethel Feldman


Em criança pensava que umas pessoas nasciam nas esquinas e outras na maternidade. Quem nasce na maternidade cresce devagar, quem vem da esquina já nasce com rugas e morre sem dentes.

Quem determina que entre nascer e morrer alguns enlouqueçam de dor?

No inverno muda a hora. O sol diz-nos adeus antes da hora marcada. O hábito se assusta e pede ao sol que se despeça devagar até que a noite seja companheira.

Marquei com ela às cinco no bar. Quando cheguei ainda era dia, ela atrasou-se dez minutos e chegou já noite cerrada. Alta, esguia trazia aos ombros um casaco beje de veludo recheado das histórias que vivi com ele no passado. Não há como não reconhecer que combina melhor com o tamanho dela tão pequena eu sou. Este ano o inverno chegou cedo , abrigou-se nos corpos de quem passeia na vida.

- Tenho comigo as chaves do meu carro que agora é teu, fica com ele por favor...

Olho para o casaco que ela veste com intimidade. Falta-me a força para dizer que não. Viajo no passado – um dia esse casaco que nunca vesti, vestiu o homem que amei sem limites.

- É bom esse casaco, não é? Tem um forro que protege sempre do frio. Vou pedir um chá porque morro de frio, queres um também? Como foi a visita ao médico? Já dormes?

Ela sorri distraída. Está tão escuro no bar que ninguém vai reparar nas lágrimas teimosas que lavam meu rosto.

- O médico é o máximo! Meu casamento ... Desde há quatro anos que vivo em função desse novo amor. Imagina que o médico também leu o livro As velas ardem até ao fim, incrível!

- Não queres tirar o casaco.? Tens a cara corada – deves estar cheia de calor

- Ele vai se mudar em Janeiro para minha casa. É melhor chamá-lo para tomar um café conosco, não achas? Já tens a chave do carro – fica-te barato. O seguro não é caro, o selo do carro baratíssimo. Estacionei-o à porta da tua casa. Não me deves nada amiga, é todo teu.

Não digo que sim, não digo que não. Despeço-me com um beijo. Meu coração combina com a chuva da noite - fria.

Esqueci as chaves do carro dela em cima da mesa do bar. Se eu tivesse um casaco daqueles nunca sentiria frio.

Tenho rugas na face – é como se tivesse acabado de nascer numa esquina desconhecida.

2 comentários:

  1. Obrigada, Luis. depois de reler apeteceu-me escrever assim:
    revisito o texto e dou de caras com ela - a dor que amei até não saber de mim.
    deixo que ela descanse no texto.

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  2. tenho para mim que só ama assim quem é livre,maduro, culto. A maioria dos mortais não é capaz de amar. É injusto mas é assim!

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