A minha terra era longe dali, no restante do mundo.
João Guimarães Rosa
Navegar, minha amada e infeliz filha, é poder num só momento viver tantos momentos; estar presente ao que se assiste e às lembranças; sentir e pressentir, chegar e esperar. O mar é este gentil caminho que nos leva em todas as direções e nos envolve como um manto. Navegar é estar sozinho sem solidão. Por isso te recordo, minha Maria, neste mar e nesta terra nova, e quero contar-te todas as andanças que me acompanham. Sei que te sentes sempre triste com a tua existência incompreendida, e quero alegrar-te um pouco e estar contigo em nossa casa. Então, pensei, escreverei para minha Maria todas as comoções das minhas viagens e as revelações delas. Para ela falarei de tudo que vivo e descubro, assim mesmo como farei para o meu Rei e meu Senhor. Já lá se vão tantos dias de minha partida, mas começarei hoje, como me ordenou meu Comandante. Quando daqui a dias a nave de Gaspar de Lemos retornar a Lisboa e nós continuaremos para as Índias, junto com a carta para El-Rei, irá também este diário para Maria. Nele, Maria, te contarei tudo. Começo hoje. Mas parto daquele primeiro dia em Belém. Assim, muitas coisas que te direi serão puras lembranças. Outras, verdades.
9 de março de 1500
Tu bem sabes, Maria, quanto esperei por este dia. Sim, grande era a dor por separar-me de ti e deixar a nossa casa. Mas eu quis esta viagem para Calicute. Com ela, pelo prest¡gio que El-Rei nosso Senhor tão bondosamente se dignou conceder-me com os honrosos encargos a que vou encontro, espero mais que pela minha glória encontrar forças e poderes para suavizar a tua dor de esposa infeliz, minha Maria. Assim hoje, daqui de Belém, parto. A manhã é bela e ensolarada. As nossas treze potentes naves parecem ansiosas, enquanto balançam as suas velas no movimento constante da brisa do Tejo. Lá está Caparica com o seu baluarte. Neste ancoradouro do Restelo desde cedo o povo é muito. Manhã cedinho me aproveitei do recolhimento da capelinha de Santa Maria para pedir ao Nosso Senhor proteção para todos nós. Agora a festa da viagem começará . O Restelo revive o alvoroço da partida - já lá se vão três caravelas em busca do caminho das Índias. Quando há apenas um ano a vela de Gonçalo Coelho - que hoje parte de novo - entrou no Tejo, antecipando a chegada do Gama com as novas do mundo que Portugal abrira para o conhecimento de todas as gentes, mesmo então o Restelo não recolhia tanta malta como vejo hoje daqui de minha postação. Baila-se, canta-se, é toda uma alegria. No cais, o nosso Comandante está com os outros doze capitães na espera de El-Rei. Nas treze naus fervilha o movimento da multidão de mil e trezentos homens que cedo partirão para confirmar nas Índias o poder de nossa terra. Mil e trezentos homens são eles, minha querida filha. Marinheiros, soldados, nobres cavalheiros, religiosos, físicos, cronistas, intérpretes, comerciantes, mestres, aprendizes, degredados, aventureiros, e até mesmo viajantes sem qualquer missão. Os treze pilotos conduzem as naus para posições melhores de embarques e partidas. O Tejo resplandece na luz dessa manhã e caminha direto para o mar, indicando caminho. A nossa é uma viagem difícil. Deve não descobrir, o que é possível, mas confirmar; o que tantas vezes supera o poder do Homem. É o que vejo agora no rosto e nos olhos do muito honrado Pedro Álvares Cabral. O Comandante como sempre está sereno, ao lado de seus doze capitães. Mas seus olhos contemplam muito além da malta alegre que baila e canta sem cansaços. Seus olhos já percorrem os mares que virão e serão desvendados. Bartolomeu Dias agora lhe fala, mas eu não escuto as palavras ditas. Posso seguir somente o profundo olhar do meu Comandante em busca de tudo aquilo que nós ainda não sabemos. Chega El-Rei nosso Senhor. O séquito do Comandante e seus doze capitães, mais, acompanhados por frei Henrique de Coimbra e seus religiosos franciscanos, vai encontro a D. Manuel. El-Rei nosso Senhor conduz o séquito para a tribuna colocada no centro do cais. Alas de soldados armados de espadas, com elmetes abertos protegendo-lhes as cabeças, contêm a malta festosa, enquanto o real cortejo atinge a tribuna. Ali, El-Rei nosso Senhor faz sentar-se ao seu lado o Comandante desta que é a maior armada jamais reunida por um Rei cristão. O nobre Pedro Álvares Cabral assiste às festas ao lado de seu Rei. Cessadas essas, El-Rei nosso Senhor se alevanta, dirige-se na direção do Comandante e coloca-lhe na cabeça um barrete bento mandado de Roma pelo Santo Papa. Em seguida, entrega-lhe as armas reais e a cruz da Ordem de Cristo. O olhar do Comandante vê, distante, esta cruz fincada numa nova terra.
10 de março
O mar é tudo, minha doce Maria. Caminhamos sempre por essas águas e caminhamos, caminhamos. Já não vejo nada mais que céu e mar. Da terra, da minha terra reconheço somente este vento que nos movimenta num marulhar constante e o vôo assíduo das gaivotas. Lentamente, e com tristeza, vejo que as gaivotas começam a rarear sempre e mais com o passar das horas. Já não são tantas como há algumas horas neste entardecer triste e sereno do nosso segundo dia de navegação. Hoje é uma terça-feira; é preciso que não me esqueça. A nau-capitânea corre segura sobre as águas e eu falo muito com Pero Escolar, nosso piloto. As outras doze caravelas aqui est„o, ao largo, defronte e ...s costas da nau-capitƒnea. Avante caminha a nau de Sancho de Tovar, nosso vice-comandante. Sancho de Tovar e Álvares Cabral estão sempre em contato, mesmo na navegação. Ali vai, muito protegida, a nave dos mantimentos de Gaspar de Lemos, assistida à vista pela vigilância das velas de Gonçalo Coelho e Bartolomeu Dias. Sabes, Maria, as naves, umas são muito grandes e poderosas com grandes bocas de fogo, como esta capitânea e a de Sancho de Tovar; outras são menores, de árvores que parecem pequenos pinheiros em comparação com os grandes mastros das maiores. As naves menores muitas vezes indicam o caminho. Lá vão as de Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Luís Pires, Simão de Pina. As grandes velas de Diogo Dias, Simão de Miranda, Aires Correa, Aires Gomes, observam atentas a lenta navegação. No fundo do azul que entardece caminha a nau do infeliz Vasco de Ataíde. E agora, para onde irão as gaivotas? Quem sabe, talvez retornem para subir o Tejo e contar-te, Maria, como vamos e como caminhamos.
11 de março, quarta-feira
Hoje, mais do que nunca, minha querida filha, matutava sobre o teu casamento e tuas desgraças. Sabes quanto sofro com a tua desventura. Desde que o teu marido desgraçadamente foi degredado, não posso suportar de ver a dor por que passas e que sempre procuras esconder aos nossos olhos. O meu genro Jorge de Osório, teu marido, já mereceu uma vez da graça do nosso Senhor. Espero que a soberana bondade não conheça limites e conceda ainda uma vez perdão ao meu genro. Tudo isso será bom lenitivo não somente para ti, doce minha Maria, mas igualmente para mim, pois que não suporto ver nos teus olhos a dor que te está consumindo lentamente. Também para isso navego, quero que o saibas.
FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.
Ato 1º
(No fundo do grande salão real, iluminado pela luz que pouco a pouco acentua a majestade de sua figura, está sentado D. Manuel. Diante de todos chega o Mensageiro, Pero Vaz de Caminha.)
Senhor,
trago boas novas. Meu Comandante, o honrado Pedro Álvares Cabral, me mandou para que as Vos relatasse. Assim farei. Para isso não falarei de coisas técnicas, de ciências, mas apena das coisas que vi. Procurarei de ser fiel e exato à realidade, ainda que, como Vossa Alteza sabe, entre o real e o irreal vivemos sem que muitas vezes saibamos os confins das coisas.
De um paraíso, do paraíso, Vos falarei, mas não de sonhos. Já que tudo tem um começo, parto do início. Dele Vossa Alteza é também presença física, não somente de amor, como será sempre em todos os outros momentos da minha estória, quando Vossa Alteza ali não estava em corpo. Mas não importa. Por toda a magia de nossos sonhos vividos, também agora neste primeiro momento que está para começar, contemplando a todos nós outros, Vossa Alteza poderá contemplar-se a si mesma.
(O grande salão se ilumina completamente. No cais do Restelo a cena se desenrola. Povo, soldados, damas e cavalheiros. As sombras das caravelas ondejam na direção do horizonte aberto.
O povo baila e canta no cais. Damas e cavalheiros passeiam, ao largo. Na tribuna, diante do Tejo, está El-Rei. Ao seu lado senta-se o Capitão-mor. Os doze outros capitães e os religiosos completam o grupo.)
Senhor,
este é o magnífico espetáculo da partida. As naves da maior armada jamais vista pela gente estão para largar. A festa do povo ressoa em todos nós. Sabemos para que vivemos, já que estamos prontos para encontrar o desconhecido. Este é o porto das maravilhas, este é Belém que assistiu a tantas partidas venturosas e a tantos gloriosos retornos. Ali está o heróico Vasco da Gama. Três anos apenas são passados de quando ele partiu daqui mesmo para alargar o conhecimento do mundo. Menos de um ano estamos de seu regresso glorioso com as notícias de novos mundos para a gente. O nobilíssimo Gama ali está nesta festa. Agora mesmo se aproxima outro herói lusíada, o valoroso Gonçalo Coelho, e os dois se falam, o Gama recomendando ao seu capitão - que novamente parte - que torne com outras glórias. Junto deles está Bartolomeu Dias - aquele mesmo que venceu o gigante tormentoso, abrindo todas as estradas para a maior glória de Portugal e para a dilatação de nossa Santa Fé. Com os heróis Bartolomeu Dias e Gonçalo Coelho, lá estão os outros capitães do nobre Álvares Cabral: Sancho de Tovar, o destemido vice-comandante da armada; Nuno Leitão da Cunha; Pero de Ataíde; Luís Pires; Simão de Pina; Diogo Dias; Simão de Miranda; Aires Correa; Aires Gomes; Vasco de Ataíde. Alguns entre os melhores filhos de Portugal. Deles falará a fama pelos séculos.
El-Rei se levanta, coloca na cabeça do Capitão-mor um barrete bento enviado de Roma pelo Santo Papa como benção pela maior glória da fé cristã divulgada nos mundos desconhecidos pelo Soberano de Portugal. Logo depois, El-Rei consigna ao Capitão-mor as armas reais e a cruz da Ordem de Cristo:
Senhor,
assim fizestes, e nossos corações eram plenos de ansiedade e esperanças. Para confirmar, partimos. Para confirmar o que sabíamos e vivíamos. A potente armada deixa lentamente o amado Tejo. O mar se abre à nossa ousadia. Daqui vejo tudo: o murmurar da malta festosa, a azáfama de mil e trezentos marinheiros, soldados, senhores, cavalheiros, degredados, simples viajantes sem missões. Vejo tudo do alto de uma torre, de uma fortaleza que se há de construir em memória desta e de outras partidas e para glorificação do augusto poder de Vossa Alteza. É uma torre bela, a de Belém. É uma grande nave, quase aérea na beleza das pedras brancas de paredes e muros, construída para cantos de paz, mas soberba, potente, majestosa. A sua arte é nova, mas nela vemos todo o passado de nossa terra lusa. Os ornamentos que encantam e espantam, os exóticos bichos e flores e figuras mais, confundem-se docemente com o ar que caminha pelo Tejo, vindo de longe, de todo o Portugal, por rios vales montanhas, e guia essas partidas para o mar desconhecido, destino e estrada. Mais que fortaleza, esta é a torre da imaginação que reduz à realidade dos homens a dimensão do infinito.
Senhor,
agora daqui vejo partir a Vossa Armada para confirmar verdades vividas.
domingo, 1 de agosto de 2010
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Sílvio Castro é um grande escritor brasileiro. É uma honra e um prazer tê-lo como nosso colaborador. O Memorial é uma obra-prima.
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