quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Silvio Castro - 12


30 de abril, quinta-feira


Quando havíamos terminado de comer e já estávamos prontos para descer à terra, chegou à nau-capitânea Sancho de Tovar com dois jovens que ele ontem recolhera na praia e que foram seus hóspedes muito especiais. Já que ele não comera, prepararam-lhe a mesa. Os hóspedes sentaram-se cada um na sua cadeira e comeram de tudo que lhes foi oferecido. Não deram vinho porque Sancho de Tovar dissera que eles não gostavam da bebida. Acabado de comer, descemos todos à terra. Logo que chegamos à praia eles começaram a aparecer. Chegaram quatrocentos, quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas, que todos usavam para o jogo das trocas. Comiam conosco de tudo que lhes oferecíamos. Alguns deles bebiam vinho; outros não o podiam suportar. E estavam então mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles. Não consigo encontrar uma razão para tal mansuetude e segurança, minha querida filha, senão na ingenuidade e pureza de coração dessa gente. Nisso muitas vezes penso que eles nos são superiores e deles muito deveremos aprender. Por exemplo posso contar-te um episódio acontecido neste dia que confirma este meu sentimento sobre o ânimo deles. Quando saímos do batel, disse-nos o Capitão-mor que seria bem que fôssemos diretamente à cruz que estava encostada a uma árvore, junto do rio, com a finalidade de ser colocada amanhã, 1º de maio, num posto de grande realce. E mais, que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. Assim o fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo, e logo foram todos beijá-la.

Nesse dia, minha querida e amada filha, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamborim nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Aceitavam convites de todos para subir a bordo, como se cada um deles estivesse disposto a embarcar sem nenhum medo de um outro mundo de lá, que certamente é muito diverso deste de cá. Porém foram levados a bordo nesta noite somente alguns, isto é, dois com o Capitão-mor; Simão de Miranda, um, já trazido por pajem; Aires Gomes, um outro, igualmente por pajem. Sancho de Tovar também escolhera um dos jovens do outro dia para pajem.

1º de maio

Este, minha querida filha, foi um grande dia!

Manhã cedo saímos para a terra com a nossa bandeira, formando um solene cortejo. O Almirante, logo que desembarcamos dos nossos muitíssimos batéis, determinou que fôssemos para o sul, abaixo do rio, por lhe parecer este o melhor lugar para plantar a cruz. Assim se fez. Encontrado o posto ideal, enquanto alguns homens ficavam ali cavando o buraco para a cruz, partimos com ele em demanda dela, na outra parte da terra onde fora deixada desde ontem. E com os sacerdotes e religiosos que à frente cantavam fomos trazendo-a dali, em procissão. Belíssimo e comovente espetáculo foi a saída da cruz, minha Maria, pois já ali estavam setenta ou oitenta deles quando chegamos; e apenas recolhemos a cruz, muitos deles correram para ajudar-nos, colocando-se por debaixo dela. Assim fomos em procissão até o ponto onde ela seria colocada, e já agora eles eram mais de cento e cinqüenta. Chegados ao local predeterminado, a cruz foi plantada, juntamente com armas e divisas d'El-Rei D. Manuel. Desde então o mundo saberia que estas são terras lusitanas e aqui está Portugal.

Ao pé da cruz foi dita missa, seguida por todos nós e por mais de setenta deles. Eles estavam de joelhos, como nós, durante o Santo Ofício. E quando chegou ao Evangelho, ao que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles fizeram o mesmo, ficando assim até o fim da missa, quando tornaram a assentar-se, como nós nos assentamos. Mais comovente ainda foi no momento da consagração, minha amada filha, pois eles se ajoelharam em tamanha unção que a mim me deram a impressão de já serem perfeitos filhos de Cristo. Foi quando aconteceu um episódio excepcional. Entre eles estava um homem de seus cinqüenta, cinqüenta e cinco anos. Como o sol já ia alto, alguns deles se apartaram. Ele e outros, não. Então, enquanto estávamos no ato da comunhão, este homem maduro falava com os seus com grandes gestos expressivos, mostrando para a cruz e para o céu. Os outros o seguiam com grande atenção. Terminada a comunhão e finda a missa, frei Henrique de Coimbra nos fez uma piedosa pregação sobre a nossa santa missão. E eles seguiam a santa fala com grande participação.

Terminada a solenidade muitos deles se apartaram, enquanto outros ali ficavam. Então Nicolau Coelho mostrou que trazia consigo ainda muitas cruzes de estanho remanentes de sua gloriosa viagem de dois anos antes nas Índias, com Vasco da Gama. Pedro Álvares Cabral e o herói da Índias asssentaram que seria bem lançar aos pescoços de cada um deles uma daquelas cruzes com crucifixo, coisa que foi feita, com solene benção, pelo padre frei Henrique. Antes de receber a cruz de estanho, cada um deles beijava a imagem crucifixa. Minha querida filha, esta foi a festa vivida aqui que mais alegrou meu coração.

O sol já ia muito alto, minha adorada filha, quando tudo isso acontecia. Enquanto eu, antes de acompanhar o cortejo que se movia de novo para bordo, extasiado e comovido, contemplava esta terra bendita e a via imensa, sem fim, para o norte e para o sul. De uma parte via uma extensão infinita, plana, de grandes arvoredos, formando bosques florestas e selvas, ladeados, como uma visão maravilhosa para a minha comoção, por um mar de profundo azul, de uma parte, e por um céu, quase um outro mar profundamente azul, na parte oposta.

Não, minha querida Maria, eu não sonhava: aqui è realmente o paraíso reencontrado.



FESTA PARA O PR¡NCIPE VENTUROSO.

ATO 9º

(A cena é uma praia deserta e semi-iluminada. Vê-se apenas a penumbra que descobre aqui e acolá sombras indistintas.

Na penumbra, em primeiro plano, caminham D. Manuel e o Mensageiro.)

Príncipe,

não é verdade que a festa acabou. A noite encobre as maravilhas que os nossos olhos viram nesses dias, mas que os nossos corações pressentem mesmo nesta aparente cegueira. Tudo é silêncio onde sempre reinou alegria e vida; porém, meu Senhor, tudo recomeçará. Retomaremos a passada alegria, apenas encoberta pelas sombras que hoje não nos deixam ver tudo que sobejamente conhecemos. Assim o faremos e então a Vossa Majestade será louvada mais uma vez com todas as expressões das maravilhas sem fim deste mundo novo.

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