quarta-feira, 16 de junho de 2010

Miradouro

Ethel Feldman

Se o pecado existisse eu teria pecado cegamente em busca do amor em cada pedaço de mim. Ah, se o castigo inventado fosse a eterna busca, eu teria vivido debaixo da pena máxima de encontrar em cada segundo, o amor que se adivinha e parte...

Nunca prometemos amor eterno, nem quando ele me levou a ver o miradouro atrás do prédio de esquina. Durante o caminho lia a vontade dos outros pintadas a vermelho:

“Amo Inês” ou “quem inventou o amor passou por aqui e se perdeu”

Nos outros dias em que passeei sozinha deixava que meu olhar se perdesse pelo horizonte. O muro que nos protegia da queda certa, desaparecia e eu sonhava que tudo era possível – bastava saber o que se queria. Fossem meus braços asas, fosse meu corpo imagem da minha vontade – matéria que se modela a cada sentir.

Fui a ave caçadora em cada viagem só para matar a fome de ti. Fui o eterno sopro fraco no regresso. Lembrança de ti.

Quando voltava para casa, meu cão fugia pela ladeira fora. Longe foi o tempo em que eu corria e gritava: “VOLTA!”

Noutros dias inventei o amor a três. Ele que ama ela, ela que ama ele, e eu que amo a ideia de amar alguém. Nesse amor trocámos as mãos. Odor intenso do sexo que se adivinhou e não aconteceu. Nesses dias eu sorria e lembrava-me de ti rindo da vida.

O cão volta sempre ao dono, mesmo que o cantinho onde mora seja sombrio. Se ele soubesse como fazer, gritaria:

“SALTA! Inventa o mar, mergulha nele essa fome nunca saciada.

SALTA! Navega até te perderes.

Depois VOLTA!

VOLTA, que a casa agora é branca e o teu sorriso violeta.”

Na minha rua, mesmo na esquina, existe um prédio. Nas traseiras dele um caminho para o miradouro.

Quem está enamorado senta-se num banco de pedra e espera que o sol fique laranja até dizer adeus.

Se hoje não chover subo ao miradouro.

2 comentários:

  1. Obrigado ao Carlos que publicou a Ethel. Obrigada à Ethel que não conheço, nem conhecia a obra. Chegar a casa, depois um daqueles "dias de cão" (!!!, não tenho culpa das frases feitas...)em que me apeteceu estrafegar umas tantas pessoas,e ler esta peça tão bonita, que me enviou para outra esfera, foi um momento especial, que me permitiu recompôr, reequilibrar, retomar um fio condutor mais positivo. Respondendo às perguntas do Carlos Loures sobre a utilidade dos blogues: aqui está uma!

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  2. Bam Clara, deixas-me envergonhada! Uma mensagem assim carinhosa só pode me deixar feliz. Carinho leva a carinho- assim apetece viver. O estrolábio vale a pena. O jantar/almoço de ve ser feito para selarmos um abraço desejado.

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