Manuela Degerine
Capítulo VII
Etapa 3, da Azambuja a Vila Franca
Segunda parte
A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há-de ser, não sei.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Miro mais uma vez a mochila tentando encontrar uma solução. Ao fim de algum tempo, que terá sido curto, parecendo muito demorado, ocorre-me que posso coser a alça. Ainda bem que trago agulha e linhas... Meia hora de costura à beira do campo, sentada em cima de um saco de plástico, por o lugar me parecer sujo; aproveito para reforçar também a outra alça. E prossigo o caminho.
Mais à frente tenho dúvidas quanto ao trajecto. Parece-me que saí do caminho, sigo à periferia de um campo, através de uma vegetação alta, porém continuo em frente – o caminho para Reguengo deve também orientar-se naquela direcção e a caminhada entre silvas e roseiras bravas não me desagrada. De facto, quando chego à estrada, logo vejo a primeira seta amarela num poste: ah!
Em Reguengo paro na fonte para encher as garrafas, vem uma mulher falar comigo, onde vai a menina, assim sozinha, vai com Deus, é verdade, mas não tem medo? Uma enfermeira foi assaltada e violada à saída do hospital Amadora-Sintra. E uma rapariga da região também foi raptada junto à estação da Azambuja. Eu, digo-lhe a verdade, até de ir à Valada tenho medo. Fixo a interlocutora perguntando aos meus botões se haverá tantos bandidos que a desejem violar e assaltar, mesmo no caminho para a Valada, que dista dois quilómetros de Reguengo; mas agradeço o cuidado.
A partir de Reguengo, durante quase vinte quilómetros, o meu trajecto acompanha um dique. Chego a Valada às onze e meia. Surpreende-me o apetite que sinto. Sento-me num parque, à sombra, entre o dique e a praia fluvial, como a sanduíche colossal que me prepararam no restaurante onde ontem jantei, como mais bolachas vitaminadas, como laranjas, nozes e figos, acabo com o chocolate preto e, agora vim prevenida, até faço um chá sumptuoso da Mariage Frères numa garrafa de plástico... Consigo parar o banquete antes da indigestão. Sigo para Porto de Muge.
Nestas minhas andanças, caminhar é um prazer, a verdadeira dificuldade, o suplício máximo está no calor. Em Valada voltei a encher as garrafas todas, três litros de água, que bebo nos três quilómetros até Porto de Muge. Não posso deixar esta localidade sem voltar a enchê-las pois a seguir atravesso um território de catorze quilómetros não habitados. Um sol de crestar, de derreter, de estrugir, de esturricar... Passa um homem de bicicleta com um balde de marmelos, pergunto se há algures uma fonte, ele explica-me onde, mais adiante, depois exclama, num espanto sincero: Vai sozinha! Vá com Deus!
Compreendo a crítica dos leitores. No entanto a piedade pela peregrina não me incomoda, não me sinto sequer hipócrita, inserida numa estrutura que não me é afinal alheia. A fé que arrasta os peregrinos para Fátima ou Santiago não me parece muito distinta da loucura me faz caminhar neste inferno: a curiosidade.
Acompanho o dique por uma estrada poeirenta, a vegetação do talude encontra-se branca de pó, eu cobri-me em Porto de Muge com uma camada de protector solar, quando passa um tractor, uma carrinha, uma camioneta, o que é frequente, a poeira cola-se ao creme: devo parecer um palhaço branco. Vou bebendo a água, a mochila deixa de pesar, os pés não me doem; se não estivesse calor, sentiria gosto na caminhada mas, com esta temperatura, sofro.
Avisto, a certa altura, um grupo de jornaleiros a arrancar e queimar plantas num campo; os quais me fitam com um espanto muito evidente. Se vissem passar uma marciana não fariam outra cara. Qual a razão deste pasmo? A imprudência de uma mulher neste descampado? A insensatez de me expor sem necessidade ao calor? Talvez ambas as coisas. Observo os homens que conduzem tractores e camionetas: parecem-me honestos trabalhadores. Dizem boa tarde e seguem em frente. Embora o caminho seja de facto isolado, à beira de campos imensos, não sinto medo nenhum.
As minhas botas chegam acima do tornozelo e parecerem bem fechadas porém, a certa altura, uma pedra minúscula, quase um grão de areia, consegue entrar por cima, entre a bota e a perna direita. Uma regra é que, apenas sentimos algo, devemos de imediato parar e verificar, contudo eu não vejo por perto sombra nem espaço onde, molhada com me encontro, me sente sem ficar enlameada; guardo para mais tarde a busca da pedra. Avanço mais dois ou três quilómetros, continuo sem poder poisar a mochila, também molhada, assentar um saco de plástico, onde me apoiar; atravesso um deserto poeirento. Quando me forço a fazê-lo, é tarde demais: tenho uma bolha na planta do pé direito.
E agora?
quarta-feira, 2 de junho de 2010
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