Manuela Degerine
Capítulo X
Etapa 4: Chegada a Santarém
Bem sei quem era Camões, e quem sou eu.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Quinta-feira, 22 de Outubro de 2009, incerta quanto ao tempo, não pus o despertador a tocar. Acordo às sete horas, vou à janela ver: a rua e as grades da varanda encontram-se molhadas mas parece-me que, neste momento, não chove. Tal circunstância reforça a esperança – talvez a chuva não persista. Saio de casa às oito e meia, apanho o metro para o Oriente e o comboio para Santarém.
Previ caminhar vinte e um quilómetros até Arneiro das Milhariças. Começo a subir a encosta que na última vez desci, vejo a vegetação molhada de chuva recente, porém o sol brilha radiante, como radiante eu subo. Dormi bem e sinto-me disponível para novas descobertas.
Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett conta a peregrinação do autor a Santarém – porém esta viagem é o que as Viagens menos contam. No capítulo XXIX o autor defende-se das expectativas: Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Viagens, se te falto, sem o querer, a promessas que julgaste ver nesse título, mas que eu não fiz decerto. Querias talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e larguras dos edifícios? algarismo por algarismo, as datas de sua fundação? que te resumisse a história de cada pedra, de cada ruína?... Almeida Garrett escrevia numa época em que a literatura europeia, após A Viagem Sentimental de Sterne e Tiago, o Fatalista de Diderot, praticava a digressão com arte e malícia.
Estas digressões das Viagens deliciaram-me desde a primeira leitura mas não aos outros alunos da minha turma; e torturaram sucessivas gerações de alunos obrigados pelos programas a lerem-nas numa idade em que, na sua maioria, não tinham adquirido os conhecimentos necessários para, nem digo as apreciarem, ao menos as compreenderem. Uma amiga minha, a Isabel, na primeira leitura, pensava até que o A. em, por exemplo, Faz o A. modestamente o seu próprio elogio, significava o Almeida... Claro: tínhamos dezasseis anos.
Longe de mim insinuar que tais programas eram demasiado exigentes. Os programas devem ser sempre exigentes. Devem ser sempre ambiciosos. Devem sempre obrigar-nos a interrogar, a procurar – a aprender. Devem surpreender-nos sempre. A falta de exigência nos programas é uma forma de desprezo: assenta na convicção de que a caixeira só existe para se sentar em frente da caixa, não tem uma vida interior, uma sensibilidade, uma compreensão, uma memória e portanto, para ser caixeira de supermercado, só precisa de conhecer as notas e as moedas do euro. Sinto-me contente por ter sido formada numa época em que os programas obrigavam a ler integralmente as Viagens, quer mais tarde eu me tornasse escritora, quer fosse mulher da limpeza, em que os programas contavam com a minha inteligência, em que apostavam na minha capacidade para entrar no pacto da leitura. E todos os meus colegas, mesmo aqueles que gemiam com a leitura de Os Maias, tantas páginas, cresceram nelas incomparavelmente mais do que os alunos de hoje com os documentos que agora lhes apresentam. Apenas um exemplo: participei numa reunião de formação dos assistentes durante a qual um folheto da McDonald’s do Brasil era proposto como documento pedagógico para o ensino do português língua estrangeira em França. (No comment.)
Faço a presente digressão pelo ensino para afinal aqui declarar que, tal como Almeida Garrett, também não faço a descrição pormenorizada de Santarém. Estas Novas Viagens contam um percurso pedestre de Lisboa a Santiago de Compostela, atravessam um Portugal que só pode ser visto desta maneira – a pé. Não vou por isso descrever-te, leitor curioso, os monumentos de Santarém; que tu conheces. Os quais eu aliás desta vez também não vi. Visitei-os noutras ocasiões em que aqui cheguei de carro. E hei-de revê-los quando aqui voltar.
O objectivo da viagem é agora outro: atravessar o Portugal que existe para além das cidades e das auto-estradas. (Almeida Garrett lembrou que havia Portugal fora do triângulo situado entre o Chiado, a Rua do Ouro e o Teatro de S. Carlos.)
E, como Almeida Garrett não passou para além de Santarém, entro agora, digamos... numa terra incógnita da literatura.
Vamos juntos descobri-la.
sábado, 5 de junho de 2010
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As crónicas são um achado, percorrendo os caminhos interiores de quem caminha.Não lhe perco uma, Manuela.
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