Carlos Leça da Veiga
(Continuação)
As culpas da não modernização do país, sem que, por regra, até hoje, para contrariá-las, tenha conseguido vingar uma proposta válida e verdadeiramente nacional – como nem o Regalismo nem a Regeneração conseguiram – foram e são lamentadas com constância e, também, atribuídas, com maior ou menor justiça, ao secular obscurantismo imposto pela vontade despótica da hierarquia religiosa romana, às exigências e às soluções menos correctas das várias governações monárquicas, aos vestígios mantidos do empedernido conservantismo dos possidentes, às peripécias políticas que o jacobinismo maçónico impôs à Primeira República, à inconsequente aventura belicista nas tormentas da Flandres, às aberrações ditatoriais dos cinquenta anos do salazarismo, ao absurdo e às inconsequências políticas das guerras coloniais e, já no fim desta longa lista, ao “revanchismo” das facções políticas da reacção nacional, sempre em oposição às transformações sociais conseguidas no tempo posterior à vitória inesquecível do 25 de Abril.
Todos estes acontecimentos, ou cada um, na conformidade das maiores conveniências da época – oportunistas nunca nos faltaram – não escaparam à acusação de terem sido os autores do atraso material do País, ou seja, por seu intermédio, terem conseguido impedir o país da guindar-se para a galeria cimeira dos Estados do centro europeu.
Na realidade, as forças político-sociais que por séculos, com maior ou menor presença, têm dominado a vida portuguesa, para além duma lamentável e constante submissão política às determinações alienígenas – as excepções só confirmam a regra – só optaram por querer impor políticas tímidas, recuadas, estáticas e apáticas, senão mesmo retrógradas, exactamente como aconteceu com a generalidade dos sucessivos governantes que, quase sempre, desde a Restauração até hoje, outra coisa mais não permitiram deixar fosse feito ou, muito mais desconcertante, pelo certo, muitos deles, não deviam saber como não fazê-lo.
Se o atraso e a decadência nacional eram evidentes e se nisso não só a coroa, a cúria, o jacobinismo e o salazarismo – estes, pelo menos – por evidência mais que sobeja só podem receber responsabilidades indesculpáveis importa, também, dever ter-se presente e levar-se em linha de conta, para melhor compreensão da História nacional que, sucessivamente, sobre o passado português posterior a 1580, caíram um sem número de transtornos políticos de grande monta a que nem o consulado reformador, autoritário em excesso, do regalismo de Pombal, bom grado tentasse, não conseguiu deitar mão inclusive dominar com a suficiência mais desejável. Em Portugal, na segunda metade do século XVIII, mesmo após as reformas conseguidas por esse consulado pombalino, o pensamento oficial “nunca ousou pôr em causa a verdade e a validade da revelação cristã, nem afirmar a superioridade da razão sobre a fé, antes sempre havendo proclamado a harmonia da razão e da religião, pois que de Deus e da razão divina ambas promanam” conforme, sobre o assunto, escreveu o Professor Doutor Brás Teixeira.
Sessenta anos de dominação da coroa castelhana com a perda consequente de muitas fontes de riqueza colonial; vinte e oito anos duma guerra de Independência que exauriu o tesouro nacional; alianças internacionais de triste memória e piores resultados; um terramoto urbano de proporções e prejuízos gigantescas; os retrocessos impostos pela “viradeira”; a ausência forçada para o continente americano da chefia do Estado e dos seus dez mil acompanhantes; as devastações criminosas, a brutalidade inesquecível e os roubos sistemáticos das três invasões francesas; os atropelos inadmissíveis duma outra inglesa; os sucessivos desaguisados e investidas do absolutismo miguelista; os efeitos indesejáveis duma guerra civil de dois anos; a perda do Brasil; a presença influente, constante e asfixiante duma cúria romana retrógrada e intolerante; a incapacidade política “com rei mas sem roque” duma monarquia em fim de estação; a pusilanimidade dominante duma Primeira República, desta feita, “sem rei, nem roque” que, por isso mesmo, nunca conseguiu impor a estabilidade precisa para que, depois, na sua sequência desastrosa, para maior castigo da população, sobreviesse uma ditadura cinquentenária que primou pela imposição do obscurantismo ao deliberar enveredar pela ordem internacional fascista. Quaisquer destes acontecimentos só podiam ter dado um contributo muito negativo para o acentuadíssimo desgaste nacional e, como assim, para a manutenção do estado de atraso material do país.
Embora esse consumado atraso material fosse, e seja, tanto inegável como indiscutível, isso, embora imensamente lamentável, não podia – nem pode – significar que a sua emenda radical – uma alteração decisiva e imperiosa – dependia, ou dependa, dum mimetismo nada razoável de qualquer modelo político de aparência desenvolvimentista com raiz e metodologia alienígenas oriundos, donde quer que fosse, e, para mais – hoje em dia, como nunca – sujeito a um número considerável de condicionalismos geoestratégicos nada recomendáveis, sejam eles políticos, económicos, militares, culturais ou sociais.
Já nos meados do século XIX, como Portugal não era uma cópia da Europa central – do seu modelo de crescimento material – uma das vozes mais ouvidas e mais influentes na área do racionalismo, por entender o contrário, haveria de endereçar ao seu país o apodo desprestigiante e degradante de “reino cadaveroso” sem, quanto baste, ter apreciado e avaliado que, depois duma grandeza e poderio mundiais indiscutíveis – a evolução toca a todos e a ninguém perdoa – Portugal passou a ser, desde os fins do século XVI, um império numa decadência constante e impossível de sustar. Foi sujeito às perdas coloniais, consequências nefastas da ocupação castelhana; foi imprevidente na aceitação fácil das contrapartidas dos Methuen; foi acossado, e de que maneira, pela perda do ouro e dos diamantes do Brasil; foi dirigido por maus governantes; foi sujeito a uma reacção religiosa implacável; foi vitimado por dois anos duma guerra civil com antagonismos fortíssimos e, por igual, sujeito às depredações que a Europa napoleónica e inglesa – sempre a Europa – insistiu em dedicar-lhe. Com tantas circunstâncias deletérias seria muito difícil que Portugal pudesse estar noutro estado que não fosse o de decadência material acentuada.
O génio dos génios da literatura nacional desse século XIX que, à altura da sua dimensão, inda agora – mau grado o desfavor do poeta Pessoa – não tem émulo conhecido, se não queria dizer como Lorde Beaconsfield “que no mundo só há de verdadeiramente interessante Paris e Londres, e tudo o resto é paisagem”, linhas à frente, bom grado a lucidez saudável e o encanto das suas apreciações enternecedoras sobre a paisagem portuguesa, acabava por não conseguir fugir ao pensar luctíssono daquele Lorde, como fosse ter deixado escrito que “A originalidade viva do universo está em Paris e em Londres; tudo o mais, é má imitação de província.” Ele e muitos outros Homens dum talento enorme, com modos, interpretações e explicações diferentes, no mais essencial, haveriam de tornar-se herdeiros do pensamento de Alexandre Herculano cujo magistério extremamente influente, por erro grave, ainda a ser pago, conseguiria fazer submergir aquele outro diametralmente oposto, duma importância reconhecidamente capital, que foi produzido por Sampaio Bruno. Para este outro vulto nacional, um Homem com presença intelectual e política muito assinaláveis – um activista destacado do 31 de Janeiro – o crescimento material que, ao arrepio, os herculanistas, tal como os sergianos – digam o que queiram dizer – sempre confundiram com desenvolvimento, esse crescimento material não podia ser a tónica política fundamental da análise da História nacional porquanto, como invocava e exemplificava, havia a grande dignidade do aspecto moral do comportamento nacional cujo, fosse como fosse, a todos e a tudo, sobrelevava e tinha de sobrelevar. Esse comportamento, como, mais tarde, asseverou Teixeira de Pascoais, podia e devia opor-se, senão mesmo sobrepor-se, com vantagem indeclinável, ao baixo nível da vida material do país e fazer frente ao gosto doentio, sempre em voga, da cópia, senão mesmo da submissão às imposições da Europa. Nada indica que, nos dias que correm, não deve querer continuar-se com esse ideário, inda agora tão saudável.
(Continua)
domingo, 20 de junho de 2010
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