Carlos Loures
No princípio era o Sandokan
– Eu cá hei-de estar sempre contra a lei! ¬– afirmou com uma convicção agressiva, peremptória, de quem não vai admitir quaisquer dúvidas ou réplicas, o Abílio, que, por sinal, era filho de um sargento da Guarda Nacional Republicana.
O Manuel, incontestado ideólogo oficial do gangue, puxou mais uma fumaça ao humilde e clandestino Kentucky, enquanto ponderava com toda a calma aquela tão solene quanto radical declaração. Feita a reflexão, introduziu depois um pequeno, mas bastante pertinente, aperfeiçoamento ao conceito:
– Contra a lei, está bem, estou de acordo. A lei é quase sempre estúpida. Mas nunca devemos estar contra a justiça.
Ficámos os três num saboroso silêncio meditativo, procurando digerir a notável profundidade daquelas duas singelas peças de retórica que, bem vistas as coisas, se completavam. Era ao fim da tarde de um esplendoroso dia do começo do Verão. Tínhamos resolvido por unanimidade faltar às aulas e, num mergulho kamikaze, sujeitando-nos a ser vistos e denunciados, após uma deambulação descarada e suicida pela cidade, fôramos até ao pinhal, na estrada da serração, já passados os modestos limites urbanos da sede do concelho. Com os livros e cadernos espalhados sobre a caruma e encostados à casca rugosa das árvores, fumávamos calmamente, gozando a frescura com que o vento, que soprava mansamente da serra, vinha temperar o intenso calor que se fizera sentir durante todo o dia.
– É a transgressão – comentou deleitado o Manuel, sempre muito dado, como iremos ver, a sínteses, metáforas e filosofices.
Mas desta vez até acertara. Era a transgressão, para não dizer mesmo a devassidão. Conhecêramo-nos no terceiro ano e, curiosamente, os nossos laços de amizade tinham sido criados no seio da «patriótica» organização para a juventude, a Mocidade Portuguesa. Naqueles anos, a filiação era obrigatória, bem como a frequência dos períodos de instrução, nas manhãs de quarta-feira e de sábado. Aliás, faltar à instrução era o mesmo que faltar a uma aula, dando direito a perder o ano, caso se excedesse o limite previsto para cada ano lectivo. Quando o senhor Fernandes, professor de Educação Física que acumulava as funções de responsável pelo centro da Mocidade, pediu voluntários para executar o jornal de parede, o Manuel ofereceu-se de imediato e o Abílio e eu, guiados por um mero impulso instintivo, seguimos-lhe o exemplo. Foram-nos cedidas instalações num sótão do velho edifício do liceu e logo no primeiro dia percebemos que tínhamos feito um excelente negócio. A confecção do jornal semanal poupava-nos não só o frete de marcar passo como também o de vestir a ridícula farda.
– Somos uns senhores! – foi o comentário do Manuel, depois de nos termos instalado no sótão. O Manuel, como todos os bons demagogos, na sua ânsia de se identificarem com as massas, às vezes cedia à tentação dos modismos populistas e saía-se com sínteses que, em termos de elevação e de conteúdo teórico, não eram verdadeiramente dignas de um ideólogo. Mas todos temos as nossas fraquezas.
A divisão de tarefas não foi nada complicada: o Abílio tinha muita habilidade para o desenho, eu ajeitava-me a escrever e o Manuel definia a linha editorial, os conteúdos, como ele dizia, ou explicando ainda melhor, não fazia absolutamente nada. Rapidamente, esgalhávamos uns textos ou uns desenhos e habilidades gráficas, tendo sempre o cuidado de deixar alguns espaços por preencher, para, caso alguém entrasse no sótão, dar a ideia de que faltava ainda completar o trabalho e de que estávamos a meditar profundamente sobre a melhor maneira de o fazer, ou seja, tínhamos sempre de reserva uma «história conspirativa», designação que aprendi, mais tarde, nas voltas da acção política clandestina. Éramos, de facto (passe o tal simplismo populista), uns senhores.
E a nossa situação foi-se mantendo e até mesmo consolidando. A sede do jornal servia-nos, aliás, de local de conspiração e de actividades lúdicas. Isto até ao dia em que, durante as horas da instrução, o Fernandes, entrando de rompante em altura em que não era esperado, nos surpreendeu aos três a fumar, com o Manuel a ler em voz alta emocionantes passagens de O Tigre da Malásia ou de O Corsário Negro, já não me lembro. O Fernandes, com aqueles ares ferozmente castrenses que os civis com vocação militar frustrada quase sempre assumem, passou-nos um severo raspanete, mas fomos salvos pela nossa reputação de artistas, a quem geralmente, nos partidos, organizações políticas em geral e seitas religiosas, se perdoam algumas excentricidades, algumas fugas à ortodoxia. Entretanto, no campo desportivo do liceu, os nossos colegas marcavam passo, cantando uma marcha saltitante e idiota – A minha camisa verde – que passados tempos vim a saber tratar-se da lusitana versão de uma canção dos balillas italianos ou das juventudes falangistas espanholas.
A partir deste desagradável e inopinado incidente passámos a ter mais cuidado, transferindo as nossas tarefas conspirativas e criminosas para o «clube dos jacobinos», de que falarei adiante. «Nestas coisas», sentenciara o Manuel, «o melhor é sempre partir da hipótese mais pessimista. Nunca se deve conceder facilidades ao acaso. O acaso é, geralmente, o grande inimigo da eficácia». Tinha toda a razão, embora muitas vezes nos tivéssemos metido em sarilhos por não termos acautelado devidamente a retirada. Mas a essas situações, o Manuel, um verdadeiro malabarista na manipulação de palavras e de conceitos, chamava ousadia. Ser ousado era quase obrigatório, era um acto de inteligência, deixar as coisas ao sabor do acaso era ser supinamente estúpido. Muito bem. O problema é que, por vezes, a prática atraiçoava vilmente a habilidade semântica, como adiante iremos ver. Mas voltemos ao que importa. Para o sótão do Fernandes passámos a reservar apenas o deliciosamente transgressor dolce far niente das manhãs de quartas-feiras e sábados. Esta situação ia-se mantendo de ano para ano.
Numa corajosa decisão, no final do ano lectivo anterior, resolvêramos deixar de ler os livros do Emilio Salgari. O papel que Sandokan e o Capitão Morgan desempenhavam como padrões de comportamento para o nosso grupo fora substituído por Sam Spade, que imaginávamos sempre com as feições duras do Humphrey Bogart (o Ânfrei Bógar, como dizíamos familiarmente). Ninguém como ele para trocar as voltas à lei em defesa da justiça! O Falcão de Malta, único livro de Dashiell Hammett (o Daxiel Amé, no nosso inglês simplificado, onde não existia ainda o luxo dos agás aspirados) que lêramos até àquela altura, transformara-se numa bíblia que estudávamos com empenho e devoção. Este salto qualitativo nos nossos hábitos de leitura tinha tido reflexos marcadamente positivos na eficácia com que o nosso gangue passou a defrontar a cidade, as diabólicas hostes do mal, o poder e a repressão, em suma, as forças da lei que, de mãos dadas com a injustiça, governavam a cidade e o mundo.
Na realidade, todas as acções empreendidas por nós no ano anterior, ainda na «era Sandokan», tinham acabado de forma desastrosa. Foi o que aconteceu logo em Outubro com a ideia do periscópio. O Abílio fabricou, com um tubo de cartão de embalar o papel vegetal, um periscópio que, segundo nos garantiu, iria permitir ver o interior da casa de banho das raparigas. O plano consistia em, colocados junto ao muro das traseiras do liceu onde se abriam as pequenas janelas dos sanitários, encostar a extremidade superior do aparelho a uma zona em que o vidro fosco da janela fora previamente raspado interiormente (numa surtida perigosa que um de nós ali fizera) e espreitarmos a parte de baixo do engenho, l’oculaire, como nos disse o Abílio, não sei porquê em francês. Sempre segundo o Abílio, mercê do jogo de prismas que concebera, poderíamos devassar os segredos daquele verdadeiro santa sanctorum da intimidade feminina. O inventor foi o primeiro a experimentar a geringonça e ia relatando: «É a Leonilde». E, após uns segundos, sussurrou excitado: «Ena pá, estou a ver-lhe o cu!» Acotovelando-o, consegui que me deixasse espreitar e, para ser franco, vislumbrei uma imagem confusa e leitosamente esbatida daquilo que me pareceu ser unicamente o globo de vidro branco do candeeiro eléctrico do tecto. O Manuel, após ter também espreitado, confirmou o meu cepticismo. E foi mesmo mais longe quando analisávamos a situação, já no «clube dos jacobinos», que era o nome que dávamos à pequena arrecadação que o meu pai tinha no quintal das traseiras da casa e onde decorriam agora as nossas clandestinas reuniões: provou cientificamente, se assim se pode dizer, fazendo desenhos e esquemas numa ardósia, que o aparelho, tal como fora concebido, apenas permitia ver a direito, pelo que, ficando a janela a dois metros e tal do chão da casa de banho, não era possível divisar nada digno de interesse.
O Abílio não se deu por vencido. Introduziu alterações no seu periscópio, criando aquilo a que pomposamente chamou depois um dispositivo de visão zenital. «Como os dos submarinos», acrescentou com orgulhoso didactismo para tentar dissipar as nossas eventuais dúvidas. Na altura em que nos preparávamos para testar o novo protótipo do engenho, durante um intervalo entre duas aulas, estávamos os três junto ao muro, quando nos apareceu de surpresa, como que surgido do nada, o sacana do Oliveira, o contínuo, um sicofanta sinistro, que logo nos levou, aos empurrões, até ao gabinete do reitor. Resultado: uns puxões de orelhas, a apreensão do periscópio e três dias de suspensão averbada. Um verdadeiro fiasco.
Seguiu-se o caso do eterno retorno.
(Continua)
terça-feira, 1 de junho de 2010
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Uma delícia. Eu cá prefiro o Marlowe mas não renego o Spade.
ResponderEliminareheheCarlos, eu levei uma sova do padre por causa de uma carta de amor à Manela Sebastião. Vocês estavam muito mais avançados.
ResponderEliminarCarla, eu talvez prefira o Marlowe também. Mas aqui o Sam Spade funcionava melhor como catalizador ficcionístico. Isto é uma ficção, Luís, não é autobiográfico. Aliás o livro de onde extraio o conto chama-se. A VIDA É UM DESPORTO VIOLENTO (subídios para uma autobiografia verdadeiramente falsa).
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