segunda-feira, 5 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra-39

Manuela Degerine



Capítulo XXXIX




Décima primeira etapa: Maria.





Encontro-me às nove horas, na mesma Praça do Comércio, com a rapariga da véspera. Falamos em espanhol: boa ocasião para eu praticar o que aprendi, já lá vão tantos anos, na universidade. Maria tem trinta e quatro anos, vive em Málaga e é professora de inglês. Vai no quarto caminho de Santiago todavia, nos anos precedentes, seguiu sempre o Camino Francés. Agora começou em Lisboa porém, por falta de tempo, fez de autocarro o percurso entre Fátima e Coimbra. As primeiras etapas, em particular quando atravessou o vale do rio Trancão, assustaram-na pois, a certa altura, um carro com três indivíduos acompanhou-lhe, durante uma eternidade angustiosa, o ritmo da caminhada; quando por fim, sem ela perceber porquê, eles desandaram, já Maria se via nos piores apuros. Ser roubada é sempre aborrecido, pior que tudo é ser violada: Maria está hoje radiante por encontrar companhia.


Surge entre nós uma simples e imediata cumplicidade. Conversamos durante todo o dia. Os caminhos de Santiago. As opções de vida. As nossas cidades (eu acumulo: tenho quatro.) Os amores. A família. A alimentação. As leituras. Todos os pormenores da paisagem e das localidades que atravessamos.

O Caminho continua sinalizado de maneira inconstante, há sinais redundantes e, de repente, nada de nada. Nestas ocasiões recorremos ao roteiro Sur le Chemin de Saint-Jacques de Compostelle, Le Chemin Portugais (Via Lusitana) de Gérard Rousse.

- Vê lá o que o teu Gérard diz...

Dali a pouco já dizemos o nosso Gérard, depois passamos ao diminutivo: o nosso Gegê.

Maria conta-me que pratica com frequência turismo aleatório. Quando dispõe de uns dias livres, fecha os olhos, aponta na direcção do mapa, depois reflecte se aquela direcção lhe parece ou não apetecível. Isto lembra-me, é evidente, o grupo OULIPO, cujos membros usam esta táctica para a escrita de narrativas de viagem imaginária.

Para além disto, Maria é sinestésica. Ou seja: os sons e os números correspondem, na percepção dela, a cores. Falamos longamente da sinestesia e, claro, de Baudelaire e das suas Correspondances. Que Maria não conhece... Comme de longs échos qui de loin se confondent / Dans une ténébreuse et profonde unité / Vaste comme la nuit et comme la clarté / Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Entre conversa e risadas, doem-me os pés e as costas, quase não me apercebo destes pormenores. Isto é... Apercebo-me, mas lá longe, por detrás do resto, mais interessante, percurso, paisagem, conversa, que agora capta, de maneira intensa, a minha atenção. (No entanto, com o defeito da auto-análise, não deixo de notar também a situação. Tenho, como tem o leitor, uma estrutura de cebola, a primeira camada, a segunda, a décima...) Vem-me à memória um grafito que João Alves da Costa cita em América em Carne Viva: Sometimes I feel good and I’m God. Estou hoje assim... Não é desagradável!

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