quinta-feira, 8 de julho de 2010
Novas Viagens na Minha Terra
Manuela Degerine
Capítulo XLII
Décima segunda etapa: da Mealhada a Águeda
O momento de calçar as botas é doloroso. Tenho seis bolhas mas são as primeiras, maiores e inchadas, que mais me doem. Caminho de maneira bizarra. Maria avisa-me: cuidado, as tendinites aparecem assim, por caminhares numa postura incorrecta! O pior: o meu coração palpita. Caminho portanto devagar. Terei que interromper a caminhada? Teimo em tentar, ao menos, desta vez, chegar ao Porto. Mais três dias. Conseguirei?
Sem paciência para acompanhar o meu ritmo, Maria acelera e, mais adiante, senta-se à espera.
Durante todo o dia nos divertimos com um aviso que Gérard Rousse faz no resumo da jornada: Cuidado, ao chegarem a Águeda, logo a seguir à ponte, em baixo, à direita, avistam um café-residencial mas sigam em frente, pois este lugar de residencial só tem o nome e os quartos são usados para actividades que só de muito longe se podem relacionar com o Caminho...
Em Lisboa, sou obrigada a conviver, todos os dias, quando subo e desço a Almirante Reis, com o proxenetismo e o tráfico de droga mas, após a actividade frenética com que deparámos na Mealhada, não consigo imaginar em Águeda, onde – diga-se – nunca parei, a rua do Benformoso. Que actividades serão aquelas? Filatelia? Troca de cromos com os campeões das zonas Norte e Centro? Clube de xadrez? Cibercafé?... É verdade que nada disto se relaciona directamente com o Caminho de Santiago. Ficamos na expectativa.
Este percurso de 23 quilómetros também não é difícil. Alguns pinheiros e eucaliptos, algum campo, muito bonito e florido, no início do percurso, antes de Aguim; depois da Anadia, bastante alcatrão, pela rota dos vinhos, através de um habitat disperso, entre muros, caves de S. João, Quinta da Grimpa, uma zona industrial... E, antes chegarmos a Águeda, um linda Estrada Real.
A temperatura é amena e agradável. Quase não transpiro. Se não sofresse fisicamente, apreciaria a passagem por esta região.
Sentimo-nos ambas esgotadas quando chegamos a Águeda. Mal olhamos para o internacionalmente célebre café-residencial que, visto do exterior, não evidencia qualquer actividade singular; aceleramos na direcção dos bombeiros. Após alguma expectativa, pois estamos no dia 4 de Maio e começam a passar grupos de peregrinos na direcção de Fátima, os bombeiros acabam por nos dar guarida. A descansar nos beliches do dormitório encontramos dois franceses (que Maria conheceu em Coimbra) e um casal de peregrinos portugueses. Estes dormem agora pois, como quase todos os portugueses, caminham durante a noite pela N1.
Os franceses chamam-se Paul e Martine. Vêm de Lisboa, encontraram-se no início da viagem mas não caminham sempre juntos, pois Martine gosta de seguir no seu ritmo e fazer paragens frequentes em cafés. Lê Mémoires d’Hadrien de Margueritte Yourcenar, pergunta-me onde poderá comprar livros franceses.
Martine percorre há seis anos os Caminhos de Santiago – e, pormenor que não tranquiliza, mostra-me duas bolhas. Paul, nos últimos dez anos, seguiu também várias vezes o Camino Francés e diversos outros caminhos de Santiago através da Espanha. Acham o Caminho Português particularmente difícil, pela falta de albergues e sinalização. Queixam-se da poluição; é verdade, até chegarmos a Santarém, mesmo no campo, o chão é lixo, o odor desagradável e não vemos uma gota de água transparente. Tudo isto criou neles um acentuado sentimento de exotismo. Martine pretende que em Coimbra, na pousada da juventude, foi picada por percevejos. Explico-lhe que, apesar das aparências, do lixo e da poluição, não se encontra no Terceiro Mundo. Eu fui picada por percevejos na Índia, na China, até no Brasil – em Portugal, nunca. E ela terá sem dúvida sido picada por melgas – o que é diferente!
Paul faz todos os dias, quando chega ao albergue, alguns exercícios de yoga, para repousar os músculos. Só me resta o mínimo de força para tomar duche, comer um pouco de fruta, beber um pouco leite, escrever linha e meia no diário – e deitar-me. Congratulo-me com este pormenor, que representa um progresso: continuo com as seis bolhas. Os vinte e três quilómetros de hoje não me agravaram o estado dos pés. Bom sinal.
O meu coração continua a palpitar, não consigo adormecer de imediato; depois, a pouco e pouco, o ritmo cardíaco normaliza-se e adormeço profundamente. Nem oiço os portugueses que, às duas da manhã, quando se preparam e arrumam as bagagens, acordam os outros.
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Manuela, só de ler as tuas crónicas, tão realistas, bem escritas, vividas, já me estão a aparecer bolhas nos pés... A tua escrita desenvolta e bonita, não é surpresa para mim. É-o a pertinácia, que te reconhecia, mas que não sabia ser tão forte. Caramba, ir a pé a Santiago, ainda que em etapas! Espero que dê um romance (estas crónicas são mais de meio caminho andado. Até no sentido literal). Bela série de posts, Manuela. Não perco um!
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