Marcos Cruz
Hoje entrou uma gaivota na minha loja. Era escura, como se tivesse saído de uma chaminé, e tinha o bico preto. Um senhor que vinha a passar, também ele escuro, talvez indiano ou turco, não sei, é que me explicou que as gaivotas nascem assim e só uns meses mais tarde, como a luz que emerge das trevas, se cobrem de branco e amarelecem o bico, naquilo que mais parece um disfarce, uma candura enganosa, pouco condizente com os seus dejectos fecais, largados lá do alto, quais mísseis, para corroer as superfícies edificadas do mundo. À minha mercê, e logo à minha, ou não fosse eu um Cristo da fisiologia voadora, estava um tenro exemplar de gaivota, num precário equilíbrio de patas, mas aparentemente sem medo, curioso até, revelando vontade de fazer uma vistoria à loja e observar com detalhe cada um dos objectos expostos. O meu primeiro impulso foi olhá-la, certificar-me de que nada de errado, para além do óbvio, que era uma gaivota entrar, com ares de cliente, numa loja, lhe teria acontecido, tipo uma queda, uma luta, um ferimento. Depois decidi dar-lhe o seu tempo, deixá-la estar, até que, presenciando o crescer do seu conforto, optei por ir ao café em frente comprar um pão e seduzi-la com migalhas para junto da porta.
Sem gestos bruscos, debicou uma e deitou-a fora, esclarecendo-me sobre a sua falta de fome. Na rua, alguns transeuntes iam parando, pelo insólito de uma montra-ninho. A vizinha do lado, tirada dos seus vagares, prontificou-se a resolver o caso e, assertivamente, mas com a necessária delicadeza, pôs a gaivota fora da loja. Como pegar-lhe e devolvê-la à mãe passou, então, a ser o problema. Alguém ali se lembrou de um caixote. Veio uma caixa de cartão apanhada no lixo. Assumia protagonismo a mais desastrada falta de jeito quando uma mão vinda não se sabe de onde ergueu majestosamente a ave e, contemplando os presentes com um olhar sagaz, explicou: “Fui criador de pássaros”. Eu já tinha visto a cena do médico que aparece exactamente quando um indivíduo cai no chão, acometido por um problema cardíaco, ou algo assim, mas o súbito surgimento daquele criador de pássaros, como um relâmpago vindo de todas as incapacidades ali presentes, afigurou-se-me extraordinário. Talvez por se ter apercebido disso, ou então por outra qualquer razão, quem sabe até por uma razão derivada da que levou a gaivota a entrar na minha loja, o rapaz escolheu os meus olhos como alvo da intrepidez, quase loucura, que enchia os seus. “Para lhe pegares, é assim, por trás”. Disse isto e ia-me passar o bicho, que gritava e tentava à força toda espetar-lhe uma bicada, arrancar-lhe a ponta do nariz. Eu, para trás, dei mas foi um salto. O criador de pássaros não me disse mais nada. Desandou, rua fora, com a gaivota nas mãos. Eu segui-o e vi que, minutos depois, já estava ela no seu habitat, provavelmente pondo a mãe ao corrente da aventura. Voltei para a loja constrangido, como quem acabou de ser ensinado mas não aprendeu a lição, e questionei-me sobre o sentido que faria o recém-terminado episódio, se é que fazia algum ou estava destinado a fazer. Mais tarde, na varanda de casa, interpelando a noite, ouvi um ruído de gaivota. E, como se uma luz alva tingisse o cinzento das minhas penas, assolou-me a ideia de que os sentimentos escuros não são mais do que pequenas águias que encalham no nosso íntimo e dele não saem enquanto não os conhecermos o suficiente para sabermos como e por onde lhes pegar, aonde querem ir e como os ajudar. Aprendê-lo, desprendê-los, deixa a mãe deles descansada e poupa-nos à sua visita. Bem hajas, criador de pássaros.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
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Bonito texto, uma história muito bem contada e uma bela metáfora sobre a forma como os sentimentos fluem pelo nosso íntimo como límpidos rios em direcção à foz ou são detidos por açudes que a nossa má consciência lhes opõe. Parabéns Marcos.
ResponderEliminarMaravilha, Marcos!
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