sexta-feira, 16 de julho de 2010

Outra Constituição, outra Democracia, uma Terceira República - 59

Carlos Leça da Veiga

Utopia que seja; quem quererá partilhá-la? (Continuação)

A alienação tem por substrato um pensamento discursivo racional – ideológico – de substantivação das relações sociais que, no caso português e nos últimos mais de trinta anos, ao arrepio das proposições constitucionais, mas por conveniências políticas inaceitáveis, tem sido veiculado e ampliado com insistência desmesurada, tanto pela comunicação social como, sobretudo, pelas intervenções políticas dos sucessivos governos. Diagnostica-se-lhes, a uns e a outros, a intenção primordial – digam o que dizerem – de reforçar a alienação da população com vista a permitir que o logro político instalado continue a facilitar aos possidentes a benesse duma sua eternização na hegemonia do poder político e, aos seus fâmulos de serviço – governantes, deputados, partidocratas, comentadores e comunicadores sociais – que não percam a mira das sinecuras pingues ou, se assim tiver de ser, assegurem, pelo menos, as gamelas e os condutos.

As classes possidentes sabem muito bem como ter os Governos, tanto na sua mão, como à sua mão. A seu lado – note-se bem – nunca falta a companhia da generalidade dos partidos políticos parlamentares que, ao aprovarem ou, simplesmente, contemporizarem com os programas e com as obras dos sucessivos executivos nacionais – as sumptuárias de sobremaneira – não podem ser dispensados da sua importante fatia de responsabilidade na tarefa de inculcar, ou deixar inculcar, na mente da população, que as variações económicas e financeiras que cada qual sente e que, agravam as condições de exploração da mão de obra, já de si muito barata, não decorrem da apropriação indevida das mais valias que resultam da exploração dessa sua força do trabalho mas, sim, de variações inevitáveis inclusive erros ou desvios de circunstância das regras do mercado e, também, das imprevisíveis flutuações da oferta e da procura, porém, como é repetido à exaustão, esse mesmo mercado, graças à sua própria capacidade de regulação e, por igual – argumento criminoso – devido a um imaginado sentido de justiça social dos seus lideres, dispõe de condições para tudo rectificar e, também, sem falta, garantir uma futura redistribuição do rendimento nacional a ser processada com a maior justiça.

Se os partidos políticos que têm tido acesso ao executivo nacional são responsáveis directos e imediatos pelo incremento da alienação política da maioria dos portugueses, aqueles outros que nunca tiveram quaisquer funções governativas, pela sua simples presença em São Bento, só têm permitido legitimar a intervenção política dos sucessivos governos que, invocando o peso democrático do contraditório – inutilizado, como tem acontecido – permitem cunhar as suas acções executivas como sendo autenticamente democráticas. Felizmente, está a haver quem não lhes dê um tal epíteto, outro sim, e bem inverso.

Em 1994, o professor universitário Doutor António Hespanha, no seu artigo “O meu trabalho é a política”, que foi publicado no jornal “Manifesto”, sentenciou – e muito bem – que “0 pior de todos os riscos do sistema político estabelecido (e ele não tem só um) é a eficácia com que aliena o cidadão comum da actividade política”.

Desde o 25 de Abril que todos os sucessivos dirigentes das maiorias políticas portuguesas têm defendido, como bem e como bom, inclusive como verdadeiramente democrático, que as regras do mercado, para mais, passo a passo, tornado declaradamente selvagem, tenham direito a assentar arraiais fixos na regulação das relações sociais de produção e que, também, os sectores socio-económicos dominantes, para melhor conseguirem uma necessária protecção política, têm de aceitar permanecer colocados em clara submissão aos ditames internacionais dos grandes possidentes de que são exemplos, para começar, a integração portuguesa na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e mais tarde nas Comunidades Económicas Europeias (CEE) transformadas, depois, em União Europeia (UE).

A obra demolidora das vontades e das esperanças nacionais portuguesas, que os anos mais recentes têm vindo a exibir com crueza e extensão bastantes, decorre, muito principalmente – uma particularidade indesculpável – da aceitação, bem acolhida, senão mesmo procurada, pelos sucessivos governos portugueses, duma sujeição sucessiva – alienante, por natureza – a relacionamentos internacionais multilaterais ao serviço de forças imperialistas.

“Vivemos no meio de um logro magistral, dum mundo desaparecido que recusamos a reconhecer como tal e que, políticas artificiais pretendem perpetuar” é uma visão lúcida e obrigatória de aceitar-se que tem a autoria acertada de Viviane Forrester.

Na verdade, a situação indubitável de dependência do exterior, têm sido um factor de devastação dos tecidos político, cultural, económico, ecológico e social portugueses já que, terá de reconhecer-se, é esse o seu fim mais verdadeiro, muito embora nunca confessado.

Ianques e centro-europeus só pretendem, por interesses diversos, que os dez milhões de portugueses não passem doutra coisa mais que simples e submissos compradores líquidos das suas produções de ordem vária inclusive das ideológicas. Como assim, no interesse da maioria da população nacional – e no uso do “terrível poder de recusar” legado por Miguel Torga – exige-se que essa obra alienígena de demolição seja considerada como autora confessa da corrosão acentuada da auto-estima nacional e, também, da descrença na busca duma saída nacional que terá de ser eminentemente política.

Na manutenção das circunstâncias constitucionais actuais – uma inquestionável ditadura dos partidos políticos – todas e quaisquer proposições de natureza economicista – as únicas que são preconizadas pelas organizações partidárias parlamentares com acesso ao executivo – nada de novo trarão, entre outras razões, por estarem firmes e decididas na defesa do sistema económico ultraliberal que é propício, cada vez mais, a um mercantilismo inteiramente selvagem, tornado verdadeiramente mafioso. Também, dada a natureza imprecisa, permissiva e imprevidente de tudo quanto, hoje em dia, diz respeito aos direitos sociais constitucionais é muito fácil haver razões bastantes para poder profetizar-se, a quaisquer das visões economicistas dominantes, mesmo quando tenham a audácia dum modesto alcance reformista que, mais outra vez, a sua falência está antevista. Ou são duma feição abertamente neoliberal e, assim, a prazo breve, por sua própria natureza, como tantas outras já tentadas, nada de bom trarão à multidão dos carenciados ou, então, se são empreendimentos falhos do cunho imposto pelos interesses económicos privados, então, não faltarão em seu desfavor os mais variados, concomitantes e incomensuráveis subterfúgios de oposição. Na simples suspeita de, no fim do percurso projectado, não possa haver, em pleno, benefícios garantidos para os possidentes, estes, como é de uso conhecido, tudo saberão fazer para liquidar quaisquer antevisões socialmente benéficas, afinal uma coisa que, regra comum, já estão habituados a conseguir. Para tanto basta-lhes socorrerem-se duma fácil interpretação da actual Constituição da República e utilizarem tanto as suas imprecisões, como a sua flexibilidade permissiva ou, mais fácil, a sua vacuidade reservada aos direitos sociais. Anos atrás, foi disso paradigmático – quem não recordará – o exemplo lamentável do socialismo que, sem decoro e com facilidade extrema, foi mandado engavetar.

(Continua)

1 comentário:

  1. As utopias podem partilhar-se, negociar-se... podem fazer-se alianças de utopias. Porém, só se transformam em realidade aquelas pelas quais se luta. E lembro-te uma verdade que há tempos me disseste - entre a realidade e a utopia se a distância for muito grande, cria-se um fosso intransponível. Muito do que tens dito, é quase de senso comum, estou certo que a mioria de nós concorda; uma outra parte, corresponde a desideratos menos universais. Mas, num cômputo geral, acho que avançaste com ideias muito positivas e que poderiam inspirar futuros constitucionalistas.

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