Tinha pensado escrever sobre África mas, vergonhosamente tarde, descobri Mahler. E a minha felicidade disparou.
Quem opta pela dor perante o prazer?
Fui arrastada, arrasada, por esse fragor e fiquei à deriva. Uma ampla asa metálica levou-me pelos espaços e esqueci-me do discurso que tinha engendrado sobre aquela penosa realidade.
Não se pode ser feliz ao mesmo tempo que se constata a dor dos outros. É da natureza humana.
O que Ki-Zerbo defendia, também, era a felicidade para África. Não sabia era para quando.
Joseph Ki-Zerbo desmistificou a África exótica, dos cheiros e das cores, cujo rasto apenas encontrou na História da Europa, a propósito do comércio de escravos, quando estudava na Sorbonne.
O que ele queria para essa parte do mundo, onde a Humanidade se descobriu a si própria, à sua fala, à sua escrita, à sua música, era o reconhecimento duma genuinidade, ao contrário da vil classificação de Pré-História para todo o seu percurso vivencial. Pré-História da História Europeia, claro está, à qual não deixaria mais de estar ligada, mas apenas como um apêndice.
Joseph Ki-Zerbo não era um nostálgico da África pré-colonial, mas soube reconhecer como, ao interromper os fluxos comerciais e culturais entre a África Central e os povos do Norte do continente, o colonialismo enfraqueceu deliberadamente o progresso que se processava de forma harmoniosa para os povos das sociedades africanas. Cidades como Tombuctu, nos séculos XIII e XIV, tinham um desenvolvimento cultural maior que muitas cidades da Europa, a ela afluindo professores universitários e alunos de além Sara. Essa foi a evolução que o colonialismo travou.
Ele não repudiava o desenvolvimento das tecnologias de informação e de outras tecnologias de ponta. O que constatava era que a importação pura e simples dessas tecnologias tal como eram concebidas nos países do Norte não servia os genuínos objectivos das sociedades africanas no seu todo. Haveria que, aproveitando esses valiosos instrumentos, pô-los ao seu serviço mas impedindo que minassem os valores intrínsecos dessas sociedades por ele identificados como o amor, a descoberta de uma verdade científica, a amizade, a estética ou a música. Para ele “o mundo dos valores é uma imensidade que ultrapassa de longe o mundo material”.
Pelos auscultadores, entra-me, agora, o “Allegreto” da 5ª.Sinfonia, considerado já como um dos mais preciosos trechos da música clássica. A mim, analfabeta musical, soa-me a beleza em estado puro. Thomas Mann, “A Morte em Veneza”, Visconti. Quando as imagens se associam o prazer é mais intenso
O que esse velho sábio burquino, nascido no antigo Alto Volta, queria era o contrário do que está a acontecer hoje: a África há séculos saqueada das suas matérias-primas, vê-as, agora, irem-se tornando progressivamente inúteis pelo desenvolvimento tecnológico dos seus predadores de sempre. Exemplo deste facto é o aparecimento da fibra óptica que arruinou a Zâmbia substituindo o cobre que era a sua principal matéria-prima. Não quereria ter visto o desenvolvimento erróneo de uma classe média despolitizada, perdida da sua cultura original e transformada em presa consumidora de marcas das transnacionais em fuga às zonas mundiais em crise.
Mas eis os violinos, em massa, em uníssono, em apoteose. Verdadeiro sortilégio.
O meu cérebro suspendeu-se. Só pulsa o coração e muitas outras fibras de que não sei a designação anatómica.
Estou em morte cerebral. Passei para outro mundo.
África fica para depois. A felicidade não se pode adiar. Não se deve. Puro egoísmo humano? Que me perdoem os deuses mas a vida é curta. Não chega para tanto
Também, tem tempo. Poucos africanos se terão apercebido bem do que Ki-Zerbo desejava. Uns porque ainda não têm condições para isso; outros porque nem o desejam mesmo. Há visões mais tentadoras de imediato.
Quanto a mim, Mahler, o avassalador Mahler fez-me apaixonar. Quando estiver saciada deste prazer, logo volto a pensar.
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Referências bibliográficas:
1. Joseph Ki-Zerbo (entrevista de René Holenstein), Para Quando África?, Campo das Letras, 2006.
2. Jean-Christophe Servant, “A Miragem das Classes Médias Africanas”, Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Agosto de 2010.
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Belo texto este da Augusta Clara de Matos. Dos melhores que passaram no estrolabio. Foi grande o prazer que senti ao lê-lo, talvez porque a sua leitura, como peça de puzzle,se ia encaixando na minha.
ResponderEliminarA Augusta Clara é uma pessoa excepcional. Não queiram saber o trabalho que tive para a trazer para o Estrolabio... Enfim, já cá está.
ResponderEliminarBem-vinda ao nosso grupo, Augusta. E vou ler o livro do Zerbo - que alternativa me resta depois de um depoimento tão eloquente?
O Luís Moreira está sem net e enviou-me um e-mail pedindo que, em seu nome, felicite a Augusta Clara de Matos por este texto «portentoso»; é uma «colaboradora magnífica» e termina assim: «Grande aquisição!».
ResponderEliminarAdorei este texto! e A FELICIDADE não se adia e por incrível que pareça Augusta, convive com a dor alheia, em espaços de tempo não visíveis.
ResponderEliminarQuanto a Àfrica o problema é velho e comum a outros continentes, melhor a outras populações. Sempre que importamos conhecimento sem ter em conta as necessidades e recursos locais, voltamos a ser invasores, presumíveis 'sabedores de tudo'.
Belo texto! Obrigada, Augusta Clara.
Belo texto da Augusta
ResponderEliminaruma mulher extraordinária e solidária, parceira de muitas causas.
Bem vinda!
A agora «nossa» Augusta não consegue colocar o comentário e pediu-me para vos transmitir a seguinte mensagem:
ResponderEliminar«Caros amigos: depois de tanto ter falado em felicidade, quase me escorrega
uma lágrima à conta da vossa generosidade. Vocês de quem, apesar de ainda
andar um pouco desorientada pelos meandros do Estrolábio, já li textos,
poesias e vi imagens de grande qualidade que me tocaram fundo. Muito
obrigada.»