sábado, 21 de agosto de 2010

Aquarela do Brasil - o manto colorido de uma realidade trágica

Carlos Loures


Temos numerosos leitores no Brasil. Julgamos que são brasileiros e emigrantes portugueses. Por outro lado, a colónia brasileira em Portugal alcança dimensões consideráveis. Esta série de textos abordará, sem sequência cronológica, um período da História do Brasil iniciado há pouco mais de 70 anos e, felizmente encerrado em 1985, com o regresso do regime democrático. Navegará ao sabor da maré, da memória, das efemérides – divagações de um português. Peço perdão aos brasileiros por alguma imprecisão histórica que cometa e agradeço que me corrijam quanto a esses erros factuais. E também que manifestem acordo ou divergência. O Estrolabio é uma tribuna livre e democrática.

Por que motivo dei este nome à série – “Aquarela do Brasil” (nós dizemos aguarela)? Vamos começar por ouvir «Aquarela do Brasil», a canção de Ary Barroso( 1903-1963), cujo retrato podemos ver acima. Depois explicarei a razão de ser do título. Primeiro, ouçamos a bela interpretação de Gal Costa.



Gostaram? A Gal Costa é na verdade uma cantora ímpar. Mas passemos então à prometida explicação - Como se sabe, o Hino do Brasil tem música de Francisco Manuel da Silva (1795 - 1865) e letra de Joaquim Osório Duque Estrada (1870 - 1927). Foi decretado como Hino Nacional em 21 de Agosto de 1922, durante a presidência de Epitácio Pessoa – faz hoje precisamente 89 anos. É um hino muito bonito, com ressonâncias operáticas, verdianas. A letra é talvez menos inspirada, mas é aquilo que as letras dos hinos nacionais costumam ser – exaltantes, apelando ao amor pela Pátria, invocando o heroísmo dos próceres.

Diz-se que numa noite chuvosa do Rio, Ary estava na sala de sua casa conversando com a mulher e o cunhado, quando se sentou ao piano e compôs de um jacto a música e a letra de «Aquarela do Brasil». Disse depois, que pretendera libertar o samba das tragédias da vida e das paixões sensuais que dominavam as letras da canção nacional. Talvez sem o pretender, ajudou a branquear um regime iníquo, brutal e corrupto. Para muitos «Aguarela do Brasil» é o como que um outro hino do país. Numa sondagem organizada pela Academia Brasileira de Letras, a «Aquarela» ficou em primeiro lugar. A letra, também de Ary Barroso, canta um Brasil idílico, uma terra de sonho, onde o samba é rei. Será que, em 1939, o Brasil era assim tão agradável para ser pintado numa aguarela de cores tão vivas? Talvez o fosse para os ricos e para os turistas. E para os brasileiros?

Em 1939, quando eclodiu a II Guerra Mundial, governava o Brasil, Getúlio Vargas. Chegara ao poder em 1930 mercê de um golpe militar, pondo termo à “República Velha” e depondo o presidente Washington Luís. As instituições democráticas foram desmanteladas – dissolução do Congresso e das assembleias legislativas. Em 1932, eclodiu em São Paulo uma revolução constitucionalista, derrotada pelas forças governamentais. Em 1934, a ditadura consolidou-se com a aprovação de uma nova Constituição. Getúlio foi eleito para um mandato de quatro anos. Em 1935, novas revoltas e movimentos insurrecionais organizados pelo Partido Comunista Brasileiro, foram reprimidos pelo Governo. Em 1937, pretextando a existência de uma conspiração comunista para tomar o poder, em 10 de Novembro, Getúlio desencadeou um golpe de Estado,. Era o Estado Novo (nome igual ao do regime corporativo de Salazar e, segundo tudo o indica, nele inspirado). Em 1 de Janeiro de 1938, Getúlio promulgou uma nova Constituição Até 1945, o país seria governado de forma autoritária, num regime parafascista. Em «Memórias do Cárcere», Graciliano Ramos (1892-1953) descreveu , em páginas de grande beleza e rigor, o que acontecia aos presos políticos – torturas, sevícias, quando não mesmo a morte. O povo, não falando numa minoria de privilegiados, continuava a viver numa pobreza lancinante, alimentado por discursos demagógicos de recorte justicialista. Foi neste quadro de miséria, dor e repressão que Ary Barroso (escreveu a sua «Aquarela do Brasil», o retrato falso de um país triturado pela repressão getulista. Foi, no entanto, um grande êxito. Na imaginação dos que viviam num mundo em guerra, a existência de um paraíso, era reconfortante.

O filme baseado no livro «1984» de George Orwell foi realizado em 1985, por Terry Gilliam, chamou-se «Brazil» e, como tema recorrente, soa a «Aquarela do Brasil». Já aqui enunciei o conceito de distopia na ficção literária e, particularmente, em «1984», de George Orwell Num mundo disfuncional, como é o que Orwell criou na sua obra, não haveria tema mais adequado para a banda sonora – uma realidade cruel e um retrato colorido, belo e falso dessa realidade. Foi exactamente assim que funcionou a música de Ary Barroso no Brasil de 1939. Um país onde imperava o terror de um governo fascista e a miséria endémica coberta pelo manto diáfano de inomináveis assimetrias sociais, aparecia transmutado em paraíso, naqueles anos em que o horror da guerra tornou apelativo o bilhete postal colorido que Ary Barroso compôs numa noite em que a chuva flagelava o Rio de Janeiro.

Para terminar, por hoje, ouçamos a versão interpretada por Frank Sinatra.

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