quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Os processos de globalização (4)- Boaventura Sousa Santos

4. A globalização política e o Estado-nação


A nova divisão internacional do trabalho, conjugada com a nova economia política "pró-mercado", trouxe também algumas importantes mudanças para o sistema interestatal, a forma política do sistema mundial moderno. Por um lado, os Estados hegemónicos, por eles próprios ou através das instituições internacionais que controlam (em particular as instituições financeiras multilaterais), comprimiram a autonomia política e a soberania efectiva dos Estados periféricos e semiperiféricos com uma intensidade sem precedentes, apesar de a capacidade de resistência e negociação por parte destes últimos poder variar imenso.[5]Por outro lado, acentuou-se a tendência para os acordos políticos interestatais (União Europeia, NAFTA, Mercosul). No caso da União Europeia, esses acordos evoluíram para formas de soberania conjunta ou partilhada. Por último, ainda que não menos importante, o Estado-nação parece ter perdido a sua centralidade tradicional enquanto unidade privilegiada de iniciativa económica, social e política. A intensificação de interacções que atravessam as fronteiras e as práticas transnacionais corroem a capacidade do Estado-nação para conduzir ou controlar fluxos de pessoas, bens, capital ou ideias, como o fez no passado.





O impacto do contexto internacional na regulação do Estado-nação, mais do que um fenómeno novo, é inerente ao sistema interestatal moderno e está inscrito no próprio Tratado de Westphalia (1648) que o constitui. Também não é novo o facto de o contexto internacional tendencialmente exercer uma influência particularmente forte no campo da regulação jurídica da economia, como o testemunham os vários projectos de modelização e unificação do direito económico desenvolvidos ao longo do século XX, por especialistas de direito comparado e concretizados por organizações internacionais e governos nacionais. Como os próprios nomes dos projectos indicam, a pressão internacional tem sido, tradicionalmente, no sentido da uniformização e da normalização, o que é bem ilustrado pelos projectos pioneiros de Ernest Rabel, em inícios da década de 30, e pela constituição do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) com o objectivo de unificar o direito dos contratos internacionais, o que conduziu, por exemplo, à lei uniformizada na formação de contratos de vendas internacionais (ULFIS, 1964) e a Convenção na venda internacional de bens (CISG, 1980) (van der Velden, 1984: 233).



A tradição da globalização é para alguns muito mais longa. Por exemplo, Tilly distingue quatro ondas de globalização no passado milénio: nos séculos XIII, XVI, XIX e no final do século XX (1995). Apesar desta tradição histórica, o impacto actual da globalização na regulação estatal parece ser um fenómeno qualitativamente novo, por duas razões principais. Em primeiro lugar, é um fenómeno muito amplo e vasto que cobre um campo muito grande de intervenção estatal e que requer mudanças drásticas no padrão de intervenção. Para Tilly, o que distingue a actual onda de globalização da onda que ocorreu no século XIX é o facto de esta última ter contribuído para o fortalecimento do poder dos Estados centrais (Ocidentais), enquanto a actual globalização produz o enfraquecimento dos poderes do Estado. A pressão sobre os Estados é agora relativamente monolítica - o "Consenso de Washington" - e em seus termos o modelo de desenvolvimento orientado para o mercado é o único modelo compatível com o novo regime global de acumulação, sendo, por isso, necessário impor, à escala mundial, políticas de ajustamento estrutural. Esta pressão central opera e reforça-se em articulações com fenómenos e desenvolvimentos tão díspares como o fim da guerra fria, as inovações dramáticas nas tecnologias de comunicação e de informação, os novos sistemas de produção flexível, a emergência de blocos regionais, a proclamação da democracia liberal como regime político universal, a imposição global do mesmo modelo de lei de protecção da propriedade intelectual, etc.



Quando comparado com os processos de transnacionalização precedentes, o alcance destas pressões torna-se particularmente visível uma vez que estas ocorrem após décadas de intensa regulação estatal da economia, tanto nos países centrais, como nos países periféricos e semiperiféricos. A criação de requisitos normativos e institucionais para as operações do modelo de desenvolvimento neoliberal envolve, por isso, uma destruição institucional e normativa de tal modo maciça que afecta, muito para além do papel do Estado na economia, a legitimidade global do Estado para organizar a sociedade.



O segundo factor de novidade da globalização política actual é que as assimetrias do poder transnacional entre o centro e a periferia do sistema mundial, i.e., entre o Norte e o Sul, são hoje mais dramáticas do que nunca. De facto, a soberania dos Estados mais fracos está agora directamente ameaçada, não tanto pelos Estados mais poderosos, como costumava ocorrer, mas sobretudo por agências financeiras internacionais e outros actores transnacionais privados, tais como as empresas multinacionais. A pressão é, assim, apoiada por uma coligação transnacional relativamente coesa, utilizando recursos poderosos e mundiais.



Tendo em mente a situação na Europa e na América do Norte, Bob Jessop identifica três tendências gerais na transformação do poder do Estado. Em primeiro lugar, a desnacionalização do Estado, um certo esvaziamento do aparelho do Estado nacional que decorre do facto de as velhas e novas capacidades do Estado estarem a ser reorganizadas, tanto territorial como funcionalmente, aos níveis subnacional e supranacional. Em segundo lugar, a de-estatização dos regimes políticos reflectida na transição do conceito de governo (government) para o de governação (governance), ou seja, de um modelo de regulação social e económica assente no papel central do Estado para um outro assente em parcerias e outras formas de associação entre organizações governamentais, para-governamentais e não-governamentais, nas quais o aparelho de Estado tem apenas tarefas de coordenação enquanto primus inter pares. E, finalmente, uma tendência para a internacionalização do Estado nacional expressa no aumento do impacto estratégico do contexto internacional na actuação do Estado, o que pode envolver a expansão do campo de acção do Estado nacional sempre que for necessário adequar as condições internas às exigências extra-territoriais ou transnacionais (Jessop, 1995:2).



Apesar de não se esgotar nele, é no campo da economia que a transnacionalização da regulação estatal adquire uma maior saliência. No que respeita aos países periféricos e semiperiféricos, as políticas de "ajustamento estrutural" e de "estabilização macroeconómica" - impostas como condição para a renegociação da dívida externa - cobrem um enorme campo de intervenção económica, provocando enorme turbulência no contrato social, nos quadros legais e nas molduras institucionais: a liberalização dos mercados; a privatização das indústrias e serviços; a desactivação das agências regulatórias e de licenciamento; a desregulação do mercado de trabalho e a "flexibilização" da relação salarial; a redução e a privatização, pelo menos parcial, dos serviços de bem estar social (privatização dos sistemas de pensões, partilha dos custos dos serviços sociais por parte dos utentes, critérios mais restritos de elegibilidade para prestações de assistência social, expansão do chamado terceiro sector, o sector privado não lucrativo, criação de mercados no interior do próprio Estado, como, por exemplo, a competição mercantil entre hospitais públicos); uma menor preocupação com temas ambientais; as reformas educacionais dirigidas para a formação profissional mais do que para a construção de cidadania; etc. Todas estas exigências do "Consenso de Washington" exigem mudanças legais e institucionais maciças. Dado que estas mudanças têm lugar no fim de um período mais ou menos longo de intervenção estatal na vida económica e social (não obstante as diferenças consideráveis no interior do sistema mundial), o retraimento do Estado não pode ser obtido senão através da forte intervenção estatal. O Estado tem de intervir para deixar de intervir, ou seja, tem de regular a sua própria desregulação.



Uma análise mais aprofundada dos traços dominantes da globalização política - que são, de facto, os traços da globalização política dominante - leva-nos a concluir que subjazem a esta três componentes do Consenso de Washington: o consenso do Estado fraco; o consenso da democracia liberal; o consenso do primado do direito e do sistema judicial.



O consenso do Estado fraco é, sem dúvida, o mais central e dele há ampla prova no que ficou descrito acima. Na sua base está a ideia de que o Estado é o oposto da sociedade civil e potencialmente o seu inimigo. A economia neoliberal necessita de uma sociedade civil forte e para que ela exista é necessário que o Estado seja fraco. O Estado é inerentemente opressivo e limitativo da sociedade civil, pelo que só reduzindo o seu tamanho é possível reduzir o seu dano e fortalecer a sociedade civil. Daí que o Estado fraco seja também tendencialmente o Estado mínimo. Esta ideia fora inicialmente defendida pela teoria política liberal, mas foi gradualmente abandonada à medida que o capitalismo nacional, enquanto relação social e política, foi exigindo maior intervenção estatal. Deste modo, a ideia do Estado como oposto da sociedade civil foi substituída pela ideia do Estado como espelho da sociedade civil. A partir de então um Estado forte passou a ser a condição de uma sociedade civil forte. O consenso do Estado fraco visa repor a ideia liberal original.



Esta reposição tem-se revelado extremamente complexa e contraditória e, talvez por isso, o consenso do Estado fraco é, de todos os consensos neoliberais, o mais frágil e mais sujeito a correcções. É que o "encolhimento" do Estado - produzido pelos mecanismos conhecidos, tais como a desregulação, as privatizações e a redução dos serviços públicos - ocorre no final de um período de cerca de cento e cinquenta anos de constante expansão regulatória do Estado. Assim, como referi atrás, desregular implica uma intensa actividade regulatória do Estado para pôr fim à regulação estatal anterior e criar as normas e as instituições que presidirão ao novo modelo de regulação social. Ora tal actividade só pode ser levada a cabo por um Estado eficaz e relativamente forte. Tal como o Estado tem de intervir para deixar de intervir, também só um Estado forte pode produzir com eficácia a sua fraqueza. Esta antinomia foi responsável pelo fracasso da estratégia dos USAID e do Banco Mundial para a reforma política do Estado russo depois do colapso do comunismo. Tais reformas assentaram no desmantelamento quase total do Estado soviético na expectativa de que dos seus escombros emergisse um Estado fraco e, consequentemente, uma sociedade civil forte. Para surpresa dos progenitores, o que emergiu destas reformas foi um governo de mafias (Hendley, 1995). Talvez por isso o consenso do Estado fraco foi o que mais cedo deu sinais de fragilização, como bem demonstra o relatório do Banco Mundial de 1997, dedicado ao Estado e no qual se reabilita a ideia de regulação estatal e se põe o acento tónico na eficácia da acção estatal (Banco Mundial, 1997).



O consenso da democracia liberalvisa dar forma política ao Estado fraco, mais uma vez recorrendo à teoria política liberal que particularmente nos seus primórdios defendera a convergência necessária entre liberdade política e liberdade económica, as eleições livres e os mercados livres como os dois lados da mesma moeda: o bem comum obtível através das acções de indivíduos utilitaristas envolvidos em trocas competitivas com o mínimo de interferência estatal. A imposição global deste consenso hegemónico tem criado muitos problemas quanto mais não seja porque se trata de um modelo monolítico a ser aplicado em sociedades e realidades muito distintas. Por essa razão, o modelo de democracia adoptado como condicionalidade política da ajuda e do financiamento internacional tende a converter-se numa versão abreviada, senão mesmo caricatural, da democracia liberal. Para constatar isto mesmo, basta comparar a realidade política dos países sujeitos às condicionalidades do Banco Mundial e as características da democracia liberal, tal como são descritas por David Held: o governo eleito; eleições livres e justas em que o voto de todos os cidadãos têm o mesmo peso; um sufrágio que abrange todos os cidadãos independentemente de distinções de raça, religião, classe, sexo, etc.; liberdade de consciência, informação e expressão em todos os assuntos públicos definidos como tal com amplitude; o direito de todos os adultos a opor-se ao governo e serem elegíveis; liberdade de associação e autonomia associativa entendida como o direito a criar associações independentes, incluindo movimentos sociais, grupos de interesse e partidos políticos (1993: 21). Claro que a ironia desta enumeração é que, à luz dela, as democracias reais dos países hegemónicos, se não são versões caricaturais, são pelo menos versões abreviadas do modelo de democracia liberal.



O consenso sobre o primado do direito e do sistema judicial é uma das componentes essenciais da nova forma política do Estado e é também o que melhor procura vincular a globalização política à globalização económica. O modelo de desenvolvimento caucionado pelo Consenso de Washington reclama um novo quadro legal que seja adequado à liberalização dos mercados, dos investimentos e do sistema financeiro. Num modelo assente nas privatizações, na iniciativa privada e na primazia dos mercados o princípio da ordem, da previsibilidade e da confiança não pode vir do comando do Estado. Só pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de instituições independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litígios em função de quadros legais presumivelmente conhecidos de todos. A proeminência da propriedade individual e dos contratos reforça ainda mais o primado do direito. Por outro lado, a expansão do consumo, que é o motor da globalização económica, não é possível sem a institucionalização e popularização do crédito ao consumo e este não é possível sem a ameaça credível de que quem não pagar será sancionado por isso, o que, por sua vez, só é possível na medida em que existir um sistema judicial eficaz.



Nos termos do Consenso de Washington, a responsabilidade central do Estado consiste em criar o quadro legal e dar condições de efectivo funcionamento às instituições jurídicas e judiciais que tornarão possível o fluir rotineiro das infinitas interacções entre os cidadãos, os agentes económicos e o próprio Estado.



Um outro tema importante nas análises das dimensões políticas da globalização é o papel crescente das formas de governo supraestatal, ou seja, das instituições políticas internacionais, das agências financeiras multilaterais, dos blocos político-económicos supranacionais, dos Think Tanks globais, das diferentes formas de direito global (da nova lex mercatoria aos direitos humanos). Também neste caso o fenómeno não é novo uma vez que o sistema interestatal em que temos vivido desde o século XVII promoveu, sobretudo a partir do século XIX, consensos normativos internacionais que se vieram a traduzir em organizações internacionais. Então, como hoje, essas organizações têm funcionado como condomínios entre os países centrais. O que é novo é a amplitude e o poder da institucionalidade transnacional que se tem vindo a constituir nas últimas três décadas. Este é um dos sentidos em que se tem falado da emergência de um "governo global" ("global governance") (Murphy, 1994). O outro sentido, mais prospectivo e utópico, diz respeito à indagação sobre as instituições políticas transnacionais que hão-de corresponder no futuro à globalização económica e social em curso (Falk, 1995; Chase-Dunn et al, 1998). Fala-se mesmo da necessidade de se pensar num "Estado mundial" ou numa "federação mundial", democraticamente controlada e com a função de resolver pacificamente os conflitos entre estados e entre agentes globais. Alguns autores transpõem para o novo campo da globalização os conflitos estruturais do período anterior e imaginam as contrapartidas políticas a que devem dar azo. Tal como a classe capitalista global está a tentar formar o seu estado global, de que a Organização Mundial do Comércio é a guarda avançada, as forças socialistas devem criar um "partido mundial" ao serviço de uma "comunidade socialista global" ou uma "comunidade democrática global" baseada na racionalidade colectiva, na liberdade e na igualdade (Chase-Dunn et al, 1998).

1 comentário:

  1. Numa palavra, desqualifica-se o Estado e substitui-se por agências supranacionais e pelo Estado de Direito e por uma Justiça formatada, segundo os interesses neoliberais. isto é que dá que pensar!

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