segunda-feira, 20 de setembro de 2010

António Botto no Brasil -17 - por António Augusto Sales



Casa onde nasceu António Botto, em Concavada, Abrantes.



O Regresso



(conclusão)



No dia 29 de Outubro de 1965 regressaste à pátria. Manhã radiante de sol aquela em que, de um avião da Varig, descarregaram a urna com os teus restos mortais no Aeroporto da Portela. Definitivamente separavas-te do Brasil esse país sobre o qual, nas costas de um documento de caixa da casa Magazine Mesbla, do Rio de Janeiro, deixaste este apontamento a lápis: «Quanto a escrúpulos não foram com êles que progrediram as cidades do sul da Bahia, que se rasgaram as estradas, plantaram-se as fazendas, criou-se o comércio, construiu-se o porto, elevaram-se os edifícios, fundaram-se jornais, exportou-se cacau para o mundo inteiro. Foi com tiros e tocaias, com falsas escrituras e medições inventadas, com mortes e crimes, com jagunços e aventureiros, com prostitutas e jogadores. Com sangue e muita coragem» (BNL – espólio de AB – cota 12/883), palavras que, embora não pareça, significam amor por aquela nação.

Seja, enfim, como escreveste! Mas doze anos e dois meses após a tua partida aqui chegam os teus ossos reduzidos ao nada das tábuas de um caixão. Começa, então, o derradeiro acto do teu drama oficialmente encenado pelos representantes (ali presentes) do ministério dos Negócios Estrangeiros, da Educação Nacional, do Instituto de Alta Cultura, alguns familiares e amigos, que acidentalmente tomaram conhecimento, e dois ou três jornalistas. Diz o Diário Popular, da tarde desse dia, que depois das formalidades alfandegárias o féretro seguiria para a Igreja da Encarnação, etapa fúnebre inexistente pois ficou na alfândega entre embrulhos, malas e utensílios à espera de despacho para um cemitério, conforme noticiava o Diário de Notícias do dia 30: «Os despojos de António Botto foram sepultados no Cemitério dos Prazeres [onde repousam] ao lado de Fernando Pessoa, de João Villaret e de outros amigos de toda a vida», para sempre supunha o repórter na sua boa fé. Afinal não tinha havido igreja nem sequer enterro pois à tarde, na primeira página, o Diário Popular tratava de informar os leitores que o funeral continuava «por não se fazer» tendo apenas saído da alfândega do aeroporto «para ficar à guarda de um cemitério lisboeta». Tão depressa se entendessem as diversas entidades seriam organizadas cerimónias fúnebres com «o expressivo nacional que o grande lírico do amor indiscutivelmente merece». Sermão? Missa cantada? Bandeira nacional? Discursos e condecorações? Uma incógnita para um programa que começava mal.


Demoraram um ano e treze dias a organizar essas cerimónias. Não rias, por favor, peço-te! De certo modo terás razão, pois significava que regressavas em força e mais uma vez, como aliás era de tua natureza, disposto a provocar o escândalo. Bom, o desrespeito pela tua memória a todos indignava. Sobre a tua pessoa desapareceram as notícias e das ossadas nem rasto. Há quem diga que te atiraram para uma arrecadação do cemitério, outros - por decoro - concedem-te o direito a um gavetão anónimo e alguns dão como referência vaga uma “ausência” em parte incerta. Com o tempo a história tornou-se absurda e começou a dar origem a pressões que colocavam a ridículo as três representações oficiais (Ó Botto, até depois de morto eras incómodo!). Mas não de todo foste esquecido. Amigos teus como o Aníbal Contreiras, Mário Azenha e José Galhardo, presidente da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais, não deram tréguas às autoridades forçando-as a uma decisão definitiva.

Na verdade eles não sabiam o que fazer contigo. Não tinham vagas onde prantar os teus ossos. Molestados com a situação chamaram a Câmara para os ajudar e o município decidiu conferir-te, não uma medalha pelos bons serviços poéticos prestados à cidade, mas um gavetão escondido no cemitério do Alto de S. João. Escrevia o Diário Popular sobre esta tua aventura póstuma: «Perseguido na vida - uma vida de malfadado destino - António Botto sofre ainda, depois de morto, esperando - como que esquecido - mais de um ano por uma derradeira morada...»(Diário Popular, Lisboa 11.11.1966).

No dia de S. Martinho de 1966 - tu que nunca foste um pândego dos copos - lá recolheste à morada que te deram com a modéstia de quem havia escrito «Da vida não quero nada / De tudo me hei-de esquecer...». Começou a cerimónia no grande portão oriental numa manhã de «um sol ático brilhando sobre as colinas de Lisboa», de acordo com um descritivo jornalístico e como, certamente, terias desejado. A tua urna seguiu acompanhada pelas tais autoridades em ar solene, escritores, intelectuais, gente do teatro, familiares e um reduzido número de admiradores e amigos, alguns dos quais bateram-se incansavelmente por um funeral digno. Depositaram-te no gavetão 1952 da rua 17, escondido por detrás de altos jazigos, com a singeleza da inscrição «À memória do poeta António Thomaz Boto», com um só tê, respeitando o que havias pedido numa carta endereçada do Brasil a George Lucas, a propósito de mais uma edição de Canções: «Não ponham Boto com dois tês, já me pesam» ( Maria da Conceição Azevedo dos Santos Fernandes – Dissertação de mestrado em Literaturas Comparadas Portuguesa e Francesa, séculos XIX e XX – António Botto, Vida e Obra Lisboa 1994). Uma prova de humildade que jamais havias tido.

O teu drama encerrava-se, enfim, na singularidade do título de O Século Ilustrado: «Um poeta arquivado numa gaveta» quando, dizia, gostarias de ter ficado no talhão dos artistas no Cemitério dos Prazeres. Esta não era efectivamente a terra prometida mas a de um destino amargo que nem a morte te soube dar com a dignidade merecida. «Quero morrer em beleza», pediste numa das tuas canções, mas não foi possível António, desculpa lá.

Fim

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Nota dos coordenadores: O texto de "António Botto no Brasil", foi expressamente preparado para o nosso blogue. Estrolabio agradece a António Augusto Sales, felicita-o pela criação de uma obra de excelência e pela sua generosidade de no-la ceder.

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A Julieta do Beco das Cruzes



Aos arrancos, lá vai ela
Despedir-se do amante
Nesta manhã de Janeiro!
Coitada, morre por ele!
- Foi o seu primeiro amor
E será o derradeiro

Todas as tardes, risonha,
Ela falava com ele
Num beco escuro de Alfama.
Era ali que ela morava;
- Até que uma noite foram
Pernoitar na mesma cama.

Estou a vê-la cingida
Ao corpo delgado e quente
Desse esbelto carpinteiro!
E vejo-a, dias depois,
Nervosa, afastar-se dele
Chamando-lhe: trapaceiro.

Mais tarde ia procurá-lo
À oficina e chorosa
Seguia-o sem que ele a visse;
E naquela perdição
Adoeceu porque um dia
Com outra o viu – mas, sorriu-se;

Soube-lhe bem ser «mulher»
Do homem que apenas teve
Um desejo passageiro!
Mas, agora – cruel preço!
Dos olhos fez duas fontes
E do amor um cativeiro

Adoeceu gravemente,
Nunca mais saíu à rua,
Sempre a tossir e a sofrer…
E era a mãe que, mendigando,
De porta em porta arranjava
Qualquer coisa pra viver.

Hoje, constou-lhe que a Guerra
O chamara para as linhas
Do combate – e combalida,
Vai ao embarque levar-lhe
No silêncio de um olhar
Os restos da sua vida.

In “Canções – “Baionetas da Morte” – livro sétimo – ed. Círculo de Leitores, Lx. 1978

5 comentários:

  1. António Augusto Sales, muito obrigado por tanto me oferecer acerca de António Botto.Um abraço

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  2. Fiquei sensibilizado com o seu comentário que me compensa do trabalho sobre um escritor e sobre um homens que, nos seus defeitos e qualidades, deixou uma obra.

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  3. António Augusto, habituei-me ao Botto e é com pena que o vejo chegar ao último capítulo. Que excelente trabalho o teu. Deve-te ter custado muitas horas, muitos dias de investigação - mas o resultado é soberbo. Este livro é indispensável para a compreensão de uma personalidade tão complexa como era a do António Botto, poeta que, pelas razões que se sabe foi incompreendido(e não me refiro apenas à homossexualidade, pois sem me querer meter por palpites clínicos, diria que ele padecia daquilo a que hoje se chama bipolaridade). A figura da Carminda é de uma extrordinária humanidade e beleza - como é possível um amor tão grande nas circunstâncias particulares em que aquele casal convivia?
    Parabéns, António Augusto. Obrigado por nos teres mostrado este António Botto. Bem hajas!

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  4. Ó carlos, meu amigo, a história de amor de Carminda é de romance. Suponho que vivia em Alfama, como o Botto, e era muito mais velha. O Botto era um homem bonito, vestia muito bem, usava sempre camisas brancas que a mãe passava a ferro visto que aquele filho foi um pouco especial. Carminda, mais velha talvez uns 15 ou 20 anos, apaixona-se por ele e confessa-lho. Ele, que por razões que desconheço, aceita-a mas informa-a de que é homossexual e ela não pode esperar dele, sexualmente, o comportamento normal entre homem e mulher. E assim se juntam, ou casam, não sei; e assim vivem até ao resto dos seus dias. Havia amor entre os dois? Claro que sim. Podem chamar amizade, solidariedade, o que quiserem, mas o que se dá com eles é o reconhecimento mútuo que ambos existem um com o outro. Foi bonito e , que eu saiba, nunca destacado.

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  5. Creio que a frase «o amor é o acto do amor» pertence ao poeta alemão do século XVIII, Novalis. Grande poeta, prócere do Romantismo, estas suas palavras, limitando o amor ao amor físico, são extremamente redutoras. Este amor entre Botto e Carminda é um bom exenplo disso. A relação deste casal atípico, é das coisas mais bonitas do teu livro.

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