sábado, 11 de setembro de 2010

Como fui sabendo que choviam balas em Santiago

Augusta Clara de Matos

Não me lembro qual foi a primeira fonte que me trouxe o golpe de Estado no Chile. Já não me recordo o que os meios de comunicação social portugueses relataram. Eu trabalhava para o Estado e, embora o regime tivesse aligeirado um pouco o torniquete que nos apertava a palavra, ainda era muito cedo para alguém se afoitar por aí além. Era parca a informação.

Mas, entretanto, chegou o Joe, o nosso grande amigo preto de coração de mel. Como conhecemos e ficámos amigos do Joe não vem agora ao caso. Mas, sempre que vinha a Portugal, o Joe visitava-nos e contava-nos muito do que a cortina de silêncio não nos deixava saber. O seu nome era John Nkrumah e pertencia à família do ex-presidente do Gana. O Joe era químico e, nessa altura, era o responsável pelo restauro de pergaminhos no museu de Florença e tinha sempre o azar de chegar a nossa casa com as notícias das barbaridades que, nesses anos, iam acontecendo no chamado Terceiro Mundo. Também cá estava quando mataram o Amílcar Cabral. Do mesmo modo, não era fácil para nós porque tínhamos que o ver chorar e consolá-lo da sua revolta e do seu profundo desgosto.

Foi, pois, pelo Joe que soubemos melhor, logo nos dias seguintes ao golpe, como tinham ocorrido as acções militares no Chile, o suicídio de Allende e as prisões em massa de opositores. Tinham passado só alguns dias do 11 de Setembro de 1973. Ainda pouco se sabia da dimensão da catástrofe que se tinha abatido sobre o povo chileno.

No mês seguinte fui passar uns dias de férias a Paris e, claro, pus-me à procura de tudo o que aqui não se encontrava porque era proibido: os livros, os discos, os filmes que passavam nos cinemas do Quartier Latin e não chegavam às nossas salas. Mal nós sabíamos que, poucos meses depois, íamos poder vê-los também.

Mas o que mais me encantou nessa tarefa de catar a informação da minha sede foi chegar à cave duma livraria que mais parecia a gruta do Ali Bábá: havia, por todo o lado, jornais, revistas, folhetos de toda a espécie.

No entanto, o que, nesse dia, podia ter sido para mim um festim, transformou-se num festival dantesco de imagens impressas em páginas e páginas, arrumadas umas, desarrumadas outras, daquela multidão de periódicos, virados em todas as direcções, ostentando as fotografias, que eu via pela primeira vez, da atmosfera de terror subsequente ao golpe de Pinochet.

Foi assim que fiquei a saber como as balas tinham chovido em Santiago e como a barbárie, que se iria prolongar por muito tempo, se tinha instalado no Chile.

1 comentário:

  1. As imagens do Presidente Allende de metralhadora a tiracolo, enquanto o palácio era bombardeado por armas pesadas.Calmo, soubemos depois que se suícidara, não permitindo ser preso pela pata fascista.Honra a Allende!

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