segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Febres de São Tomé

Ethel Feldman

1

Veio do mar aquele que um dia roubou um pedaço de mim. Parti sem saber meu destino.

- Dona este é o caminho da Boa Morte.

- E depois, Manuel?

- Dona, depois é o cemitério de São João.

- Me deixe ficar por aqui Manuel, se boa é a morte.

- Dona, o doutor vai saber que malária é essa que lhe morde a alma.

Entre o hospital da cidade de São Tomé e a casa de Daio não sei o que aconteceu. Ouvi o médico cubano segredar que o meu mal só ocupava lugar. Na esquina da dor quase atravessei a morte. Veio do mar quem me roubou existir.

Encarregaram a Daio o meu destino.



2

Na ilha, na casa de Jesus Nosso Senhor, há uma porta de entrada e outra de saída. Tão perto uma da outra – por vezes quem entra esbarra em quem sai. Entrei na casa de Deus - saí em busca de um atalho.

As estradas de São Tomé apodrecem – o alcatrão luta contra os buracos.

- Dona – cuidado! Maria deitou-se com José, veja só o pecado...

Quem me mandou sair do santuário?

- Se aquiete homem, também me deito com Cristo e ninguém me leva ao inferno...

- Dona – cuidado!

As estradas de São Tomé morrem devagar – preguiçosas.



3

Desço a rua do Quilombo, viro à direita, passo o Papa-Figo, para trás um horizonte perdido. Na minha frente, o mar. Daio está no Passante

- Branca, branca....

Queria que minha a cor fosse como a de Daio – negra.

- Branca, branca...



4

Procurei em Daio meu amor perdido noutra ilha. Outro tempo. Deixei que a dor encontrasse no meu corpo, abrigo. Alma retalhada tamanho foi o estrago. Vi a malária matar os corpos jovens de São Tomé. Tantos brancos ousaram inventar a sina daqueles que a cor ditou a dor. A branca histérica pregou que o racismo não existe. O preto desviou o olhar - sofreu em silêncio.

- Dona fique por cá...

Os olhos de Daio não mentem. Vejo nele a memória do seu povo. Cada grito calado, cada lágrima contida. Um dia matam todos os africanos.

Quero de Daio a revolta escondida. Lamento constante. Resistencia passiva.

- Dona fique por cá...

Quis de Daio cada carinho roubado. Daio triste olhou o vazio. Procurei uma chama, calor de um tempo passado. Daio triste olhou o vazio.

- Dona fique por cá...

E o que tem essa ilha perdida para além das tristezas vividas?

Não tem passado. Minha geografia – o vazio.

No regresso a casa - Lisboa, quero-te de novo vestida de véu e grinalda!

Mostra-me que também aqui é possivel amar.

Tenho sono. Saudades de São Tomé.

2 comentários:

  1. Sem comentário não ficas, Ethel. Do melhor que aqui escreveste. Lindo, original e com muito cheirinho a África, onde a humanidade guarda a sua parte mais pobre e mais sã.

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  2. E a sua origem. Desculpa,Ethel que eu já tinha lido ontem e tinha gostado muito. Invadimos-te a outra casa e...pronto, lá ficaram os comentários na gaveta.

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