sábado, 11 de setembro de 2010

A lição do Chile

Carlos Loures

Em 11 de Setembro de 1973, ainda sob a ditadura do Estado Novo, íamos recebendo as notícias terríveis que vinham do Chile. Cerca das seis da tarde (meio-dia em Santiago), estava na estação do Cais do Sodré com o Diário de Lisboa tremendo-me nas mãos e fazendo um grande esforço para que as lágrimas não se soltassem. Tudo estava perdido. Com o violento esmagamento da Revolução chilena, para nós, os marxistas que não acreditavam que da Rússia, da China, da Coreia ou da Albânia algo de positivo viesse, com Revolução cubana cada vez mais enredada nas malhas de outro imperialismo, o Chile era um farol de esperança. Um farol cuja luz era, naquele dia, brutalmente extinta.

Quando, a partir de 25 de Abril de 1974, pudemos livremente comentar o trágico acontecimento, cada tendência política fez a leitura que mais lhe convinha – os católicos conservadores viram nele a consequência lógica da tomada do poder por forças ao serviço do marxismo internacional, uma espécie de castigo de Deus. Os neo-liberais, não fugiram muito a esta explicação, pondo a tónica nas dificuldades que o governo de Salvador Allende colocou às leis do mercado. Isto é, puseram o mercado e os Estados Unidos no lugar de Deus. As diferentes linhas marxistas – os pró-soviéticos, os pró-chineses e os pró-albaneses – viram o golpe como uma resposta do imperialismo à política «aventureirista» do governo popular do Chile. Condenaram o golpe, mas a lição que tiraram foi a de que não se deve provocar o capitalismo.

No fundo, quando se falava do Chile, era de Portugal que se estava verdadeiramente a falar. Naqueles dezoito meses que a nossa Revolução durou, o povo celebrando a liberdade nas ruas, promovendo assembleias à revelia dos partidos, preocupava tanto os que defendiam uma solução «democrática» como os que pugnavam pela disciplinização do caudal revolucionário por parte das cúpulas dos partidos marxistas, estalinistas, marxistas-leninistas, maoístas, etc. PCP, UDP, MRPP e as dezenas de grupúsculos em que essa esquerda se cindiu.

A cada um sua verdade, como diria Pirandello, neste caso, a cada um o seu Chile. Pelas ruas, quando no «Verão quente» de 1975 se sentia já o bafo fétido da reacção, gritávamos «Portugal não será o Chile da Europa!», procurando esconjurar o perigo de um banho de sangue e de um regresso ao fascismo. Franco, apesar de moribundo, não hesitaria em nos enviar a sua divisão Brunete. (cujos carros de combate, diz-se, ainda chegaram a aquecer os motores para vir a Lisboa quando do disparatado assalto à Embaixada de Espanha. Os generais espanhóis, apenas esperavam autorização do Pentágono. Que não veio, pois Frank Carlucci, o embaixador norte-americano e homem da CIA, viu maneira de o assunto se resolver com a prata da casa – os Comandos e as suas «chaimites» foram suficientes para dominar uma esquerda militar dividida e hesitante. Otelo, que comandava o COPCON e dispunha de força suficiente para fazer os Comandos engolirem as «Chaimites», deixou-se aprisionar em Belém.

O povo, mesmo estando unido, pode ser vencido quer pelos seus inimigos quer pelos seus falsos amigos. Foi assim no Chile. Foi assim em Portugal, embora de forma muito menos dramática. Os chilenos, pelos caminhos da repressão brutal, os portugueses conduzidos por cavilações subtis, estão todos onde os donos de Pinochet e os patrões dos governantes portugueses queriam. Nos braços da economia de mercado.

Mas se a lição do Chile não evitou que a Revolução de 25 de Abril se tenha transformado numa “evolução” para a normalidade, torna-se mais estranho que ela não tenha servido aos chilenos para, pelo menos, recusarem novos governos assumidamente de direita, como recentemente fizeram ao eleger Sebastián Piñera para a presidência, em substituição da socialista Michelle Bachelet. Já aqui tenho dito por diversas vezes que a direita se move dentro dos chamados sistemas de democracia representativa como peixe na água. Os golpes militares deixaram de fazer sentido – carros de combate nas ruas, jactos bombardeando palácios presidenciais, fuzilamentos, tortura? É caro e é feio - dá mau aspecto.

Para quê tanto espalhafato – com a Amnistia Internacional à perna e os jornalistas a especularem? Em vez de tiros, votos; em vez de tanques, aviões e fuzilamentos, promessas demagógicas que toda a gente sabe que não vão ser cumpridas. E nem vou dizer que estou surpreendido com o que aconteceu no Chile, com a eleição de Piñera. Afinal, nós portugueses, depois de quase meio século de ditadura, não deixámos que, à sombra da democracia, se criasse uma ditadura do bloco central? A direita aprendeu a lidar com a democracia e manipula-a melhor do que a esquerda.

“Portugal não será o Chile da Europa!” – onde isso já vai.

9 comentários:

  1. Muito bem revisitado, mas o que levou ao golpe no Chile não foi a precipitação o andar pressa demais? Cercado por ditaduras de direita, com Cuba ali na garganta do Imperalismo, não houve falta de tacto? Tanto me lembro de Chavez. Oxalá que não agora que eles estão a deixar o Iraque e a puderem virar-se para a américa do sul...

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  2. Agradeço este texto. Lúcido, como deve ser un texto do Carlos. Faz-me chorar.
    Luís, não andamos rápido: a Cia, Nixon e Kissingir escondíam hasta os bems para nos alimentarmos. Não no deixaram andar, torturaram-nos...

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  3. Tiveram imensa sorte dos vossos militares serem revolucionários. Os nossos eram golpistas y pagos pela CIA, Nixon e KIssinger. Foi, como o meu amigo diz, voltar à normalidade. Nós, a anormalidade mais cruel desde o fascismo alemão. Quanto ao que Luís Moreira diz: Não Luís, não andamos a pressa demais, ao contrário, não nos deixaram andar. Escondiam até as mercadorias e não tínhamos que comer durante dois anos. Nada digo sobre o assunto no meu texto, que quis escrever como memórias pessoais, porque um dia como hoje, muitos de nos choramos. Especialmente os que sofremos tortura em campos de concentração: nos mataram, Luís!
    Parabéns Carlos pelas tuas lúcidas memórias. Se escrevo este texto, é com imenso esforço, choramingar não adianta. Tornei a ver ao Presidente já no poder, más não falamos: o

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  4. Luís,
    O que é andar depressa de mais?
    Para os mandantes é tudo o que não seja ficar parado e a amochar.
    Cuidado com um discurso que se aproxima do "ainda não estão preparados para a democracia... por isso me sacrifico a governá-los autocraticamente mas para seu próprio bem."

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  5. Gande artigo o teu, Carlos! A verdade exactamente no seu lugar.Uma efeméride da nossa alegria e da nossa amargura. Obrigada por o teres escrito

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  6. Obrigado, amigos. Foi, de facto, um dia amargurado. Um ano depois, em 11 de Setembro de 1974, uma organização marxista leninista relizou no sítio onde morava, um bairro entre a Parede e S. Pedro do Estoril, uma sessão sobre o Chile. Vinha do trabalho e passei por lá. As intervenções sucediam-se, acusando o povo chileno de, como o Luís disse, ir depressa demais e de provocar os americanos. Não sou grande orador, mas fiz uma intervenção sentida, denunciando o insuportável reformismo que aquelas acusações transportavam. Intervenção proveitosa. Grande parte da assistência aderiu ao que eu disse e os fininhos perderam dois valiosos militantes. Muito do que aqui digo hoje, disse-o nessa intervenção improvisada.

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  7. Carlos, obrigada pelo teu texto. Era quase gaiata quando aconteceu o golpe. Venho, como sabes, de uma família que sempre lutou contra o fascismo. Assim cresci, no Brasil, lembrando os dias do golpe de 64. As conversas de surdina, que me assustavam, os livros que os amigos escondiam e outros queimavam, porque a o DOPS acertava na porta de entrada e levava de todos a liberdade de serem o que eram. Estava em Portugal e vi meu professor de geografia chorar, baixinho me disse:
    - Morreu a esperança na América Latina... Allende morreu com ela.
    Mais tarde, depois com o 25 de Abril muitos amigos brasileiros que estavam refugiados no Chile correram a procura de abrigo em Portugal.
    Com eles pude sentir a dor de quem se vê obrigado a fugir. Então lembrei da minha infância pequena, ouvir meu pai contar-me em segredo que não podia viver em Portugal.
    Tenho uma amiga tão torturada que nunca mais se recompôs, tenho amigos perdidos que dificilmente recuperaram a confiança de se sentirem seguros.
    Anos mais tarde estava no Rio de Janeiro quando aconteceu a maior manifestação que pude presenciar na vida: o povo na rua chegou ao milhão e gritava pelas directas! (eleições directas para presidente). Foi nesse ano que Tancredo Neves morreu. E o povo na rua enquanto dizia: Directas sim! acrescentava: ' O Povo Unido Jamais Será Vencido'! Memórias que me comovem porque apesar da desilusão do que temos hoje por cá, pude chorar e rir quando vi pela primeira vez os militares baterem continência ao operário que acabara de ser eleito Presidente do Brasil. De alguma forma senti esse dia como uma homenagem a todos quantos acreditaram num mundo mais justo.

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  8. carlos, não é uma afirmação. Do que me lembro é quando Mário Soares "meteu o socialismo na gaveta" um dos argumentos era esse.Que não tinha havido tacto, como quem diz," não faças o mesmo aqui..."

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  9. Caro Carlos, já comentara o teu texto. O que lamento é não termos ido mais depressa. Os dias estavam contados, todos sabíamos isso e, no entanto, perdia-se tempo em debates ideológicos dentro de Unidade Popular, sem legislar. O próprio Partido Radical Chileno, importado da França e que deu dois Presidentes ao Chile, em tempos de Allende apenas queria explicações...o que Allende fazia para manter coesa a UP. O meu amigo e compadre Jacques Chonchol, que realizara como Ministro da Agricultura, por não ir o Governo a velocidade necessária, formou o seu próprio partido dentro de Unidad Popular para avançar sem travões, como comentávamos em Paris já os dois no exílio, ele na Sorbonne, eu em Cambridge. Perdeu-se muito tempo em debates ideológicos e explicações desnecessárias quer dentro da UP, quer para os adversários. O Jaques e o seu partido Socialista Cristão, sós, avançaram com toda a Reforma Agrária em três meses…

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