terça-feira, 7 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra




Manuela Degerine


Capítulo CII

Vigésima quarta etapa: de Pontevedra a Brialhos

Para que serve a língua portuguesa

Fui professora de português em doze escolas francesas. Os alunos, na maioria dos casos, tinham feito esta opção, com eles era, consoante as condições outorgadas, apaixonante ou impossível trabalhar, mas os argumentos tornavam-se supérfluos, por eles nas aulas – quando era possível trabalhar – descobrirem a língua e a cultura, das lengalengas à poesia de Fernando Pessoa, passando pelos pastéis de nata, pelas ruínas de S. Paulo, por Mariza, pelos painéis de S. Vicente... Outro trabalho, este fazendo concorrência aos doze de Hércules, que jamais acabava e sempre urgia recomeçar, era a educação dos professores.

- Ah, és portuguesa?! Não pareces...

Ninguém ignora que os emigrantes dos anos 60 eram camponeses com pouca formação escolar; contudo, quatro décadas mais tarde, alguns morreram, outros reformaram-se, muitos voltaram para Portugal, os restantes são agora franceses. Não se aprende só na escola, aprende-se a cada instante – eles aprenderam na vida francesa. Os filho e netos tornaram-se empresários, autarcas, vendedores, electricistas, médicos, militares, cabeleireiros, engenheiros, delinquentes, distinguem-se na dança, no cinema, na literatura, nas artes plásticas... Cada um consoante os seus talentos, acasos e descasos. Mas os estereótipos parecem de borracha e resistem ao choque com a realidade. A imagem do português pedreiro persiste – e, para muitos franceses, a nossa cultura não vai além do tijolo e do cimento. (Ou do aspirador: o género feminino fixou-se na porteira e na empregada doméstica.)

Eu, que os colegas imaginavam francesa, preservei a minha face lusitana em terras gaulesas. Enquanto me vi sempre como uma ilha lusófona rodeada de língua e cultura francesa, situação estimulante e não ameaçadora (a ilha também vive do mar que a rodeia), a maioria dos emigrantes e seus descendentes, sem tomarem consciência do risco, fãs do Toni Carreira e da selecção nacional, perderam o contacto com a língua, a cultura e a sociedade portuguesas. Portugal é o país das férias – durante as quais pouco saem das aldeias, falam francês, se reúnem com os vizinhos-parentes de França e vão ouvir os Carreira pai e filho. Portugal é para eles a enxertia da França num tronco português; e, se sentem saudades, é deste país. Quando regressam a França, não falham um desafio de futebol transmitido pela RTPi nem um convívio – com a presença de Toni Carreira – organizado pela associação de portugueses; alguns inscrevem os filhos no rancho folclórico da mesma associação. (Cujo rigor etnológico pode, por vezes, deixar-nos duvidosos. Lembro-me de uma aluna aparecer com o trajo. Digo eu: Ah, vem vestida de minhota... Ela até se ofendeu. Minhota?! Não! É o rancho de Pombal!) Comem com frequência comida portuguesa; mas, na maioria dos casos, a família fala francês ou, quando muito, uma mistura variável das duas línguas. No resto do tempo – são franceses.

Os alunos tinham ou não origens portuguesas; os meus colegas achavam que uns não precisavam de aprender português – já o falavam (o que é falso) – e os outros também perdiam tempo: o pedreiro e a porteira falam francês suficiente para haver comunicação. Sendo, quase sempre, a única professora de português, passei anos a argumentar que sim, valia a pena aprender esta língua. Em cada festa de anos ofereci traduções de obras e ainda possuo um exemplar de Pérégrination e dois de Le dieu Manchot (Memorial do Convento) que, ao longo dos anos, foram lidos por numerosos colegas. Orgulho-me de ter criado fãs da cultura lusófona que até, a certa altura, já se antecipavam quando surgia um disco, um filme, uma tradução ou exposição; porém a maioria continuava a manifestar alguma resistência.

Uma directora de turma, professora de História e Geografia que, analisando o caso de uma má aluna em inglês mas excelente em português, questionava:

- É boa em português... Mas vai-lhe servir para quê?

- A isso talvez ela, daqui por vinte anos, possa responder...

Eu estudei sete anos de inglês que não me servem para nada mas, em contrapartida, os três anos de latim, uma língua morta, servem-me todos os dias. E, quando acabei o liceu, vários colegas predispostos, como eu, para as línguas estrangeiras, inscreveram-se em inglês. Eu preferi o francês.

- Vai-te servir para quê?!

Se tivesse seguido o grupo, seria como se o meu pai e a minha mãe não se houvessem encontrado: a pessoa que sou hoje – e gosto de ser – não existiria.

(Cedo compreendi que só me interesso pelo que não serve para nada. O latim, o francês, a literatura, a pintura, a filosofia... Se não servem para nada e, mesmo assim, lhes dedico toda a minha vida, é porque são afinal essenciais, para além das aparências.)

Na última escola onde dei aulas (até agora), cansada de tanta argumentação, quando os meus colegas, surpreendidos por eu levar os alunos ao Museu de Orsay, inquiriam:

- Há pintura portuguesa no Museu de Orsay?

Já não me dava sempre ao trabalho de falar do impressionismo literário, de Cesário Verde e Eça de Queirós, que os alunos acabavam de estudar. Respondi-lhes algumas vezes:

- Não há. Mas o português tem potencialidades magníficas: permite falar de tudo o que nos interessa.

Não garanto que compreendessem o humor.

1 comentário:

  1. Numa Feira do Livro de Francoforte, há muito anos, antes do Nobel, o Saramago fez uma palestra (há muitas diariamente) em que falou no vigor da língua portuguesa, falada por mais de 200 milhões de pessoas. Uma senhora, creio que da Hachette, perguntou para um colega em voz pretensamente baixa, mas aguda: audível pelo menos em redor - «Le portugais? A quoi ça sert?». Eu e os restantes portugueses deitámos-lhe olhares assassinos e ela riu-se para nós, como se apenas tivesse dito uma graça. A história teve depois um desenvolvimento engraçado, mas não faz sentido contá-la. Só quis sublinhar o que disseste.

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