terça-feira, 28 de setembro de 2010

Pérolas negras

Augusta Clara de Matos

Vai-se apertando o círculo do universo do que me chega e eu reconheço, e eu aceito, e eu vivo. É a mim que tudo diz respeito. O resto já não entendo, nem creio. É quase tudo fictício. Já nem sou capaz de distinguir o real da efabulação.

Miragens. Quando lá chego, o oásis não existe.

A vida é mais ficção do que aparenta. Não queiras sair. Não consegues. Mas, dentro da ficção, também se vive. E bem mais, às vezes. Quase a prefiro à realidade. É mais fiel. Menos cobarde. Posso moldá-la, tirar-lhe a escória. Ir ao viveiro, trazer a ostra que se destacou e roubar-lhe a pérola perfeita.

É por isso que os que lêem são mais felizes do que os que não lêem. Já reparaste na face duma pessoa que não sente a osmose de apertar um livro ao peito? É baça, não se lhe vislumbra a menor chispa. Só tem este mundinho, não pode viajar por outras esferas, outros sonhos, pela vida real. Falta-lhe essa cumplicidade para fugir ao cárcere.

Os loucos lá sabem porque habitam as zonas oníricas aonde nós não chegamos, lá decidiram porque não voltam. Camille Claudel nunca mais quis esculpir…durante trinta anos.

Mas as pérolas negras também são lindas. E valiosas. Tanto!

Pérolas que escureceram pela dor acumulada, pelo sal das lágrimas, pelo suor das mãos no esforço de reterem o amor em fuga.

Pudesse eu matar a história e a memória. Mas não tenho poder para isso. A história fica gravada para sempre. A memória, se a matarmos, matamo-nos a nós próprios.

Os nossos desencontros não se encontram. Estamos para sempre a isto condenados? Tântalos em terra firme.

O narrador já não acerta. Só diz o óbvio. Despedi-o. Para isso não preciso dele. Faço eu o caminho.

Que me importa que as pérolas sejam negras? Uma a uma e vou tendo um colar encantado. Depois, trazemos a abóbora e reconstituímos a história. Eu gosto de contos de fadas, lembras-te?

2 comentários:

  1. Como eu entendo o valor das pérolas negras! Lindas e valiosas. O sentimento poético não deixa de ser poético pelo facto de ser amargo. A poesia não tem de ser alegre nem triste para ser poesia, mas tem, forçosamente de ser vida. História e memória, partes da vida, partes de nós. Como matar-vos me daria jeito à vida! Como viver-vos me dá jeito á morte!

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  2. É só um texto.Não passa de ficção.E, ainda, fiquei com mais um poema. Que sorte.

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